Um dos aspectos mais agradáveis do promissor (e ai, tão mentiroso!) do promissor século XIX, foi a quase abolição de fronteiras que então havia entre os homens. Na idade feliz em que reinou a rainha Vitória, bastava querer para se cruzar o mundo à vontade, em qualquer sentido ― e mudar-se de São Petersburgo para as Guianas dependia unicamente de disposição e algum pouco dinheiro para a passagem. Onde quer que chegasse o emigrante só encontrava promessas de riqueza e fronteiras abertas. Os Estados Unidos eram uma espécie de paraíso de portas francas, deixando que aventureiros dos quatro cantos do mundo tomassem posse do seu território de oceano a oceano, e lhe cavassem o ouro das minas, e dessem início à espantosa epopeia que foi a conquista do wild west, iniciada com o ciclo do ouro na Califórnia, prolongada na fixação pastoril nas pradarias e terminando no ciclo do petróleo. O Brasil, em proporções mais modestas fez o que pode ― e assim se formou a grandeza de São Paulo e se iniciaram outras grandezas que não puderam ir adiante.

Depois foram aparecendo as restrições emigratórias ― decorrentes da 1ª Grande Guerra, dos fascismos, do anti-semitismo, de uma generalização de falsos e ingênuos conceitos eugênicos, muito apreciados por deputados semicultos e governantes mal-intencionados. E fechou-se a porta ao emigrante. Burocratizou-se a emigração até ao delírio e logicamente com isso liquidou-se a emigração. Como se bisonhos funcionários do governo pudessem escolher as almas e os corações dos homens ― que é só o que importa quando se tratam de homens! Pois o que faz o bom emigrante não é, como o pensam racistas, ou tecnicistas, ou mercadores de braços ― não é o mesmo que faz o bom touro zebu ou a boa ovelha pelada do Sudão: a cor da pele, o pedigree, a resistência ao trabalho, a fecundidade nem mesmo a sua habilidade técnica: o que faz o bom emigrante é a sua flama interior, a sua capacidade de adaptar-se à terra nova e amá-la, e integrar-se na comunhão dos seus novos patrícios, é a sua iniciativa, o seu calor humano de criatura. A experiência ensina que alguns dos nossos melhores emigrantes foram de chegada pobres diabos, analfabetos, sem diploma técnico, sem raça e sem dinheiro. Aqui desembarcaram, lutaram, fundaram grandes famílias, das quais nos orgulhamos com justiça. Ninguém os escolheu ― eles é que se escolheram. Emigrar não é tarefa ― é vocação. E a condição essencial e qualquer vocação, para torná-la genuína, é a sua espontaneidade.

A verdade, amigos, é que receber emigrantes, receber cidadãos novos numa pátria, é como adotar filhos alheios e misturá-los com os nossos, dentro do nosso lar: não pode ser negócio, nem cálculo ― é aventura generosa, arriscada, quase heróica. Pois tão verdadeira é a afirmação de que todos os homens são iguais como verdadeiro é o avesso desse axioma: que todos os homens são profundamente desiguais. Não adianta tentar classificá-los em grupos, selecioná-los, padronizá-los. Homens são unidades insolúveis, irremediavelmente distintas umas das outras, cada uma com as suas possibilidades dentro da sua individualidade. Podeis pela intimidação, pela fome, pelo chicote, reduzir um grupo de homens a um rebanho ― mas jamais podereis reduzir a carneiros as unidades desse rebanho. É isso que faz a nossa originalidade, a nossa superioridade e, simples saco de tripas, como somos, nos distingue dos outros sacos de tripas a nós tão semelhantes; os bichos.

Que resta pois a um governo temente a Deus, como se proclama o nosso, quando se trata de problemas da emigração?

Não resta outra coisa senão abandonar essa pretensiosa escolha de reprodutores de boa raça e deixar que no Brasil entrem homens de qualquer procedência: balcânicos, levantinos, chineses, judeus, portugueses, italianos, escandinavos, até alemães, todos servem. Deixem que continuemos a nos misturar com quem nos procure e nos ame, sem lhe perguntarmos de que cor era o sangue da sua avó. Para que metermos aqui gente soberba e arrogante que terá nojo da convivência com os “mestiços ociosos” que nós somos? Para que fadar nossos filhos do fim melancólico dos índios americanos, e acabarmos como curiosidades de turistas, vivendo em “reservas nacionais”? Já não basta o que fizemos com os nossos próprios índios?

Os nossos quatrocentos anos de existência nacional nos tem provado que estamos certos: afinal, com um punhado de degredados, de marujos, de fidalgos aventureiros e mulheres nativas formamos uma nacionalidade. Completamo-la com sangue de escravo negro, sangue judeu de cristão novo, de emigrantes mediterrâneos ― e afinal somos uma boa nação, generosa, amiga de todos, da qual não temos nada que nos envergonhar perante o resto do mundo; se não somos especialmente ricos, nem poderosos, nem altamente técnicos, não tiremos opróbrio disso. Em face dos pecados do mundo, somos uma nação exemplar, e muitas houvessem como nós, que não avançamos em terra alheia, não roubamos nem agredimos, não nos metemos em guerras injustas e nunca usamos o direito do mais forte para oprimir os menores do que nós.

Ora, viva o Brasil.

rachel-de-queiroz
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