Já é certo que, se a primeira metade deste século passará à história com a marca apocalíptica das duas primeiras guerras mundiais, a segunda metade, esta que vivemos, será assinalada pela libertação dos povos coloniais ― ou seja, a libertação dos povos de cor da tutela do europeu branco. A imensa superioridade técnica do europeu, que lhe deu a hegemonia sobre os outros continentes, está desaparecendo em marcha que cada dia se acelera mais. Começou faz quase duzentos anos ― e paradoxalmente começou com um povo filho de brancos: naquele dia memorável em que os colonos norte-americanos atiraram ao mar alguns fardos de chá e se declararam amotinados contra o rei inglês.... Foi longa e foi dura essa marcha, teve imensos recuos, mas as duas Grandes Guerras afinal lhe trouxe um clímax. Pois quando se armaram os “nativos” e se ensinaram a eles o uso dos engenhos de guerra, e os familiarizaram com a máquina industrial, ― esses nativos se convenceram de uma coisa de que já desconfiavam havia muito tempo: um avião tanto voa pela mão de um inglês, como de um chinês, ou de um negro. A questão é ter o avião, ter a gasolina e aprender a pilotar. Cinquenta anos atrás o Japão já descobrira que máquinas são coisas simples, e que a cor da pele de um homem em nada prejudica o seu aprendizado técnico. Basta querer e fazer força. E para demonstrar a justeza de sua tese, o pequeno Japão insular declarou guerra ao colosso russo ― e o esmagou...

Claro que os brancos colonizadores não poderiam abrir mão graciosamente dos seus impérios; defendem-nos com unhas e dentes, lutam até o último sangue por qualquer palmo de terra ― vejam o que faz a França na África do Norte, o que fez na Indochina. Para eles não é só prestígio, questão de sobrevivência. Mas não creio que os líderes ingleses, franceses, holandeses, etc., já não se tenham convencido de que a luta está de antemão perdida, e que eles podem talvez adiar o processo de libertação, mas não impedi-lo. Nós do Brasil, nação de mestiços, que apesar do século e meio de soberania ainda não nos libertamos dos complexos coloniais, temos que ver com alegria esse passo à frente na marcha da humanidade. Acabar-se com a existência de povos servos e povos senhores, liquidar-se com a divisão do mundo entre uma plebe colonizada e uma aristocracia colonizadora. Será feito mais importante do que a Revolução Francesa (de que é aliás um resultado) porque funciona em escala infinitamente maior, com milhões, talvez um bilhão de homens em causa.

Sim, é grato aos nossos corações ver que árabes, negros, hindus, amarelos, vão expulsando os intrusos das terras imemorialmente suas, tirando aos ombros do homem branco aquele famoso fardo pesado, de tanto lucro. Basta lembrar que na Ásia, há uns vinte anos, qualquer branco, criminoso do pior crime, não podia ser julgado por tribunal nativo e tinha direito a foro especial, como um príncipe de sangue. Ou pensar na imensa Índia, que parecia irrecuperável, enterrada na sua pobreza, na sua superpopulação, no fanatismo estreito das suas seitas religiosas; e hoje, onde está a velha rainha, caduca e miserável, que não dispensava a tutela do inglês, como um cego não dispensa o seu guia? O que vemos em seu lugar é um povo jovem, orgulhoso, lutando pela recuperação, resolvendo os seus problemas, seguro do seu destino, líder de outros povos irmãos que procuram seguir roteiro igual. Ai, é consolador.

Mas que o caminho da independência é penoso e tortuoso, é. Que pode levar a muito beco sem saída, também é. E que pode dar margem, sob a máscara da libertação nacional, a formas novas de opressão e a perigosas aventuras políticas, é igualmente verdade, e isso já está acontecendo.

Exemplo: nada mais simpático do que a independência do Egito da tutela britânica. Aliás, nada mais simpático e necessário do que a consagração do autodomínio de todos os povos árabes, que começou com a derrubada da opressão turca e termina agora com a liquidação dos protetorados instituídos depois da Primeira Grande Guerra.

Nós que temos tanto sangue árabe nas veias ― sangue velho dos mouros senhores de Portugal, sangue novo de emigrantes já tão bem integrados na comunhão brasileira ― acompanhamos de olhos inquietos as nuvens de tempestade que enegrecem aquele velho céu ilustre da beira do Mediterrâneo.

Pois não é segurança nem promessa de paz que se enxerga na fundação dessa República Árabe Unida do Coronel Nasser. Nessa anexação da Síria ao Império Nasseriano, o que se nota mais é uma similitude perigosa com outra anexação que também pretendia unir “irmãos de raça”: ― O Anchluss. Que é que quer o Coronel Nasser? O triunfo do pan-arabismo? E será o pan-arabismo melhor que o pangermanismo ou o pan-russianismo?

Com os nossos aplausos fraternais acompanhamos a luta contra os ingleses, a expulsão do faraó barrigudo, Faruk, a tomada da consciência nacional do povo egípcio. E a Síria para nós é quase uma terra mater, tão grande é a contribuição dos seus filhos para a composição do povo brasileiro. Mas uma Síria absorvida pelo Egito, postos ambos atrás da fome de poder de um caudilho, já ameaçando de “unir” pela força as outras nações vizinhas ― será coisa de se festejar?

O crescimento de um caudilho como Nasser preocupa e entristece porque representa a deformação criminosa de uma coisa bela e legítima. Esses messias diabólicos vêm sempre assim, com um bom pretexto para o plantio dos seus dentes de dragão: nada havia mais justo do que a recuperação da Alemanha esmagada por um tratado de paz onde predominaram muito mais o medo e a mesquinharia do que a sabedoria e a justiça. Mas, da esperança de reabilitação de um povo, o caudilho, o demagogo enfurecido tirou o pesadelo monstruoso que foi o hitlerismo. Assim a Revolução Russa, que derrubou a podre estrutura monárquica e degenerou em Stalin e no stalinismo, cuja sombra venenosa ainda hoje contamina a luta de liberdade da China, do Vietnã, de tantos outros.

Uma Federação de Povos Árabes, ou uns Estados Unidos Árabes, em termos de liberdade e progresso, a serviço de um ideal democrático, seria um passo imenso para a recuperação e a grandeza da velha terra dos mouros. Mas um Hitler egípcio, a pregar o ódio, a sonhar com uma hegemonia que nada justifica e, pior que tudo, a pregar guerra de “raça” e até guerra religiosa, ― é um terrível anacronismo, um fornecer boas razões às cavilações coloniais dos inimigos do mundo árabe. E só terá uma saída, em verdade: a catástrofe.

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