Chegue-se a nós, Carlinhos Oliveira

Praia de Copacabana, vendo-se ao fundo o cinema Rian, Copacabana, Rio de Janeiro-RJ, 1949 circa. Foto de José Medeiros. Coleção José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Se você nunca leu José Carlos Oliveira, prepare-se para um doce problema: no mar de coisas boas que o cronista (além de romancista) nos deixou, e que por mais de vinte anos encantaram os leitores no Jornal do Brasil, por onde começar? Na dúvida, o melhor talvez seja aventurar-se, mordendo saborosas iscas verbais nas amostras a partir de agora disponíveis neste nosso Portal da Crônica Brasileira – amostras essas cuja quantidade, para o bem de todos, não cessará de aumentar, peneiradas nas mais de 3 mil crônicas que Carlinhos Oliveira, como era mais conhecido, escreveu em seus breves 51 anos de vida.

Qualquer que seja o ponto de largada, não haverá de escapar a você o cuidado literário que o cronista punha em seus escritos, produzidos, tantos deles, em circunstâncias e ambientes bem pouco convencionais no mundo da escrita, como a varanda do restaurante Antonio’s, no Leblon, onde dava expediente com sua máquina de escrever. Aquele foi para ele um ponto de observação, não apenas da vida que corria em torno, como de outra, desentranhada da memória às vezes bem remota. É o caso do prisma cromático que maravilhou Carlinhos quando, com poucos anos de idade, no ambiente miserável em que vivia, no centro de Vitória, uma das irmãs disparou o jato da mangueira em direção ao céu ensolarado. “E eu comprovava que mesmo na mais completa miséria este mundo pode ser deslumbrante”, irá ele registrar em “O arco-íris”, crônica com que mais tarde vai abrir seu primeiro romance, O pavão desiludido. Igualmente indelével ficou sendo o flamboyant descrito em “A árvore de ouro”, a abrir “num leque de fogos de artifício os seus galhos inclinados ao peso de inumeráveis folhas amarelo-ouro”.

No radar de José Carlos Oliveira estará sempre a mulher, tratada aqui com amoroso encantamento, ali com laivos de um machismo que, décadas atrás, começava a receber dela um troco cada vez mais decidido. “Pouco a pouco, com dificuldade e susto, me habituo a essa ideia de que as mulheres são independentes”, escreveu ele numa crônica de 1965, “A garota de Ipanema”, na qual se dá conta de mudanças nos costumes capazes de criar enredo novo para um clássico de Shakespeare. “O amor ganha uma nova fisionomia”, constata Carlinhos: “Começa pela amizade e se prolonga além da separação”, com o que Romeu e Julieta agora “são vistos juntos, no Castelinho, depois que o tédio, e não suas respectivas famílias, os separou”.

Mesmo nestes novos tempos, porém, esse homenzinho feioso mas charmoso e sedutor se sente à vontade para, com muito bom humor, abastecer marmanjos em geral com uma série de estratégias em “A bossa da conquista” – aí incluídas recomendações do que jamais fazer na empreitada amorosa. Exemplo? “Considera-se falta de tato a declaração brutal de suas intenções, ainda que ótimas”. Mas Carlinhos já não parece ter dúvidas nas poucas linhas de “Paris”, nas quais a capital francesa entra como referência de raspão: “O amor, que é o mais difícil dos trabalhos, exige tempo integral”. Galante, ele encaixa na deliciosa “Carta à rainha da Inglaterra” um elogio à sabedoria de Sua Majestade por haver designado, para representá-la aqui nos trópicos, “não propriamente um embaixador, mas um embaixador que é pai de uma filha cujo sorriso e gentileza bastariam para neutralizar qualquer dificuldade surgida, no terreno diplomático, entre os dois países”.

Como tantas vezes numa crônica, território por excelência do pronome “eu”, Carlinhos Oliveira não economiza no uso da primeira pessoa do singular – sem com isso, curiosamente, incorrer nas demasias de um ego exacerbado. “Não sou eu o tema daquilo que escrevo, e sim determinadas angústias passageiras, ou alegrias igualmente condenadas, que descubro no coração ou no próprio vento”, trata ele de esclarecer em “O búzio” – e recorre a imagem acústico-poética: “Quando consulto o meu coração como as crianças consultam o búzio, o que ouço é a vibração do mar, e não do búzio".

Mesmo quando o personagem é José Carlos Oliveira, como anuncia o título de “Autobiografia”, relato divertido que macaqueia jeitos de verbete em enciclopédia, você não está livre, a certa altura, de topar com cabriolas de um autor que não hesita – perdoe o spoiler – em informar sobre o seu próprio falecimento. Ninguém, hoje, está em condições de dizer até que ponto é verídica a história que Carlinhos Oliveira conta nas primeiras linhas dessa crônica, a partir de um acidente, este sim, de fato acontecido com o autor, que ainda bebê escorregou escada a baixo, daí resultando vitalício afundamento da parte posterior do crânio. Um dia, acrescenta ele, seu confrade e amigo Otto Lara Resende, “passando casualmente a mão naquele pedaço amassado de cabeça”, teria sacado: “Ah, é aqui que está o seu talento”.

De outro escritor, mais exatamente um poeta, personagem de “Farsantes no cemitério”, a identidade não é revelada – mas é possível reconhecê-lo, sem chance de equívoco, nas digitais poéticas de um moço maranhense que nos começos da década de 1950 dividia quarto de pensão com o capixaba José Carlos Oliveira, ambos recém-instalados no Rio de Janeiro. Quem se lembrar de “Roçzeiral”, poema de 1953 contido em Luta corporal, em que a linguagem é corroída até tornar-se ininteligível, ao topar na crônica de Carlinhos com esquisitices como “sôflu” terá se lembrado também de um poeta, então obscuro, que não tardará a brilhar sob o pseudônimo Ferreira Gullar.