Lá em Curitiba tem um rapaz que anda com uma crônica minha no bolso. O papel já está todo rasgado, colado com fita durex. De vez em quando ele toma uns porres, tira a crônica do bolso e lê.
Parece que se trata de um exame de consciência que publiquei há três anos. Lembro-me de que Eneida de Morais telefonou para comentar “o tom de amargura daquilo que você escreveu hoje”. Não guardo nada do que escrevo e até o meu livro falta na minha estante. Faz parte da minha doutrina pessoal o princípio de que escrever é algo tão efêmero quanto existir. Vou largando as minhas páginas pelo caminho, como a lesma vai deixando no canteiro a sua baba. Mas essa história do rapaz de Curitiba me fez tentar reconstituir mentalmente o texto que ele conserva com obstinação. Era de fato uma página amargurada; eu me arrependia de muitos erros e falava de um desconforto semelhante ao do homem que tem um lado do corpo gravemente queimado. Deitado numa falsa posição, esse homem de vez em quando rola sobre as próprias queimaduras, e nessas horas sente uma espécie de alívio. Suponho que tudo isso constitui um álibi para o rapaz de Curitiba. Que ele descobriu não ser singular, mas plural. Quando por qualquer motivo o contemplam com piedade ou reprovação, nos seus momentos de queda, eis que ele tira um pedaço de jornal que o tempo danificou e o exibe como se fosse um documento de identidade. Assim, aquele momento grave da minha própria vida, quando tudo parecia escuro, serviu para iluminar ao menos um coração, e para reabilitar alguém aos seus próprios olhos. Não tenho vivido em vão.
A preocupação de Eneida nascia, na verdade, de um equívoco pelo qual sou eu o único responsável. Numerosos amigos, numerosos leitores julgam que me refiro a mim mesmo quando digo “eu”. Mas não sou eu o tema daquilo que escrevo, e sim determinadas angústias passageiras, ou alegrias igualmente condenadas, que descubro no coração ou no próprio vento. Ninguém jamais pensou em se preocupar com a situação pessoal de um fotógrafo que fixasse uma cena de incomparável infelicidade. Quando consulto o meu coração como as crianças consultam o búzio, o que ouço é a vibração do mar; e não do búzio. É a vida de cada um que se revela sem máscara; e se quem sofre indizivelmente consegue dizê-lo, já a amargura não é indizível, e já nos encontramos num plano mais claro. É o que sempre espero: que, quando digo “angústia”, todos leiam “esperança”.