Populares sobre cobertura do palácio do Congresso Nacional no dia da inauguração de Brasília, Brasília, 21.04.1960. Foto de Thomaz Farkas/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Brasília, cuja inauguração completa 60 anos neste 21 de abril, foi assunto de cronistas muito antes de começar a sair do papel – mais que isto, muito antes de se saber em que ponto do Planalto Central, exatamente, ela seria construída. Para não descer fundo demais no tempo, fiquemos em 1948, ano em que chegou ao Congresso Nacional o relatório de um grupo de estudos encarregado de opinar sobre o melhor ponto daquela vastidão desértica para se erguer a nova Capital do Brasil – questão que os deputados e senadores só iriam decidir em 1953, quando, ao cabo de arrastada ruminação, a escolha recaiu na região conhecida como Sítio Castanho.
Mais quatro anos se passariam antes que as primeiras máquinas levantassem poeira num ermo de Goiás, tornando irreversível uma realidade que já em 1948 levava Rachel de Queiroz a franzir a testa. O que a preocupava então, escreveu em “A nova Capital”, era “a ideia de ver o planalto central violado na sua pureza e na sua inacessibilidade” – em outras palavras, ser “‘civilizado’, contaminado, vencido”. Em julho de 1961, ano e pouco depois de inaugurada a nova sede do poder, a mesma Rachel viria a reclamar exatamente da “dificuldade de acesso” a ela. Estradas já começavam a riscar o mapa do Brasil, mas em “Capital II” a cronista quer mais, reivindica a construção de ferrovias (além do restabelecimento do tráfego marítimo, praticamente desativado desde a II Guerra Mundial). “Não acredito em progresso de país onde não haja navio e trem”, argumenta a escritora cearense, que não viveu para ver o atraso em que ainda hoje nos encontramos nessas duas frentes.
Um ano antes dessa crônica, em julho de 1960, Rachel de Queiroz registrava, em “Falta de quorum”, sua impressão de que Brasília, inaugurada em abril, ainda não saíra do “período de mudança” – e mais: “Pelo que contam os que lá vão, não sairá tão cedo”. Implicava, uma vez mais, com os deslocamentos aéreos do presidente Juscelino Kubitschek. Nesse particular, Rachel já jogava farpas pelo menos desde “Cartões de Ano Novo”, de fevereiro de 1958, crônica na qual, en passant, ela se refere ao hábito de JK de “despachar no Viscount”, o avião presidencial, “enquanto se ocupa de plantar botijas de ouro nas campinas de Brasília”. A cidade começava então a brotar no planalto goiano, e, para lá chegar, homens, máquinas e materiais praticamente não dispunham de via que não fosse a aérea.
Na época, aliás, havia má vontade com as viagens de JK. Para surpresa geral, Rubem Braga, em geral implacável com políticos no poder, foi a certa altura uma voz destoante. “Olha, para falar a verdade, eu acho bom essa coisa de viver o nosso presidente a esvoaçar de um lado para outro do Brasil”, opinou o Sabiá da Crônica em “O presidente voador”, publicada em janeiro de 1957 e reprisada em julho de 1960. Com umas gotas de sua saborosa ironia, o Braga justificou sua inesperada simpatia pelo chefe do Governo: “Eu prefiro um presidente voando a dois na mão”. E lhe deu corda: “Voai, presidente, voai!”
O pé-atrás de Rachel com a nova Capital sobreviveu ao governo JK, e ao de Jânio Quadros, que não chegou a sete meses, e se estendeu pela administração João Goulart, o vice que as Forças Armadas relutaram em engolir após a renúncia do titular. “Brasília, mais do que nunca, parece um vácuo”, avaliou a cronista em “Tempo parado”, de novembro de 1961. “Contam os que de lá vêm que Brasília atualmente é um belo cenário abandonado” onde “o filme acabou” e “o diretor foi embora”.
O “diretor” em questão, Jânio Quadros, bem que tentou, no começo de sua breve administração, atrair para perto de si o talento polivalente de Otto Lara Resende – que trinta anos depois, na crônica “Convém não esquecer”, revelará detalhes da corte presidencial de que foi objeto, durante uma conversa reservada no Palácio do Planalto. “Insistia para que eu ficasse em Brasília”, relembra Otto, e “foi dificílimo dizer não e fugir de volta ao Rio.” Detalhe: “Mãos espalmadas, o presidente me garantia que me queria lá apenas por seis meses”. Foi no princípio de 1961 – quem sabe exatos seis meses antes daquele 25 de agosto em que Jânio, alegando a existência de “forças terríveis” contra si, pediu de volta o seu boné – ou o quepe de motorista de ônibus com o qual, populista que era, se exibira em campanhas eleitorais.
Difícil saber por que Otto não ficou em Brasília, sendo ela a cidade “traçada para ser feliz” de que ele fala em “Verão, capital Rio”. Provavelmente esteve na inauguração, quando menos porque o sogro, Israel Pinheiro, futuro governador de Minas, foi, à frente da Novacap, o comandante das obras de construção. Seu confrade, coestaduano e amigo vitalício Paulo Mendes Campos com certeza lá esteve, pois disso dá notícia em “Carta para depois”. Conta ali que passou a noite de 20 de abril de 1960 meio acampado num “apartamento nu”, em companhia de amigos: “Quando acordamos na manhã seguinte, já éramos Capital.” Por escrito, em pelo menos duas ocasiões Paulo se mostrou encantado com a cidade de prancheta materializada no Planalto Central. Na crônica “Brasília”, afirmou não conhecer outra no mundo que o comovesse “em sua integridade, só pela compreensão estética de suas linhas, independente de sua história ou de minhas motivações subjetivas”. Em “Seis sentidos”, à beira de um poema em prosa, o cronista fala de Brasília como sendo uma criação dotada de múltiplos recursos para seduzir quem a visite.
Também Clarice Lispector, por fim, se deixou tocar pelos encantos da cidade. Ela é artificial? Tanto faz, dá de ombros a escritora em “Nos primeiros começos de Brasília”: é “tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado”. Os arquitetos que a conceberam, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, “não pensaram em construir beleza”, diz Clarice: limitaram-se a erguer “o espanto deles”, e a deixar “o espanto inexplicado”.