Periódico
Manchete, nº 1053
Publicada também em: livro Os bares morrem numa quarta-feira, de 1980.

Estava em missão jornalística, perto da fronteira da Colômbia, cercado de árvores, indiozinhos, salesianos e piranhas do rio Uaupés. Enquanto improvisavam um jantar, o presidente Juscelino conversava sobre Brasília. Espantou-me que, para justificar a nova capital, usasse um argumento que ainda não vira em seus pronunciamentos, e que me parecia escalonar a iniciativa em termos de previsão histórica.

O conteúdo de sua opinião era o seguinte: de um modo ou de outro, os problemas decorrentes do estouro demográfico forçariam o fortalecimento de um organismo controlador internacional; esse organismo chama-se ONU, mas amanhã poderá ter outro nome ou uma autonomia de ação mais profunda; o Norte e o Oeste do Brasil, com áreas despovoadas, permanecem como reservas potenciais de deslocamentos migratórios que aliviem os desequilíbrios; ninguém pode negar que esses deslocamentos venham a ser impostos no futuro por uma organização de nações; ora, já que não podíamos povoar o Norte e o Oeste de um dia para outro, pelo menos implantássemos no âmago do Brasil a capital, conquistando assim uma razão de fato contra qualquer decisão arbitrária que alegasse o vazio dessas áreas imensas.

Hoje, vamos sentindo mais explicitamente a cobiça natural de outras gentes por esses espaços de valor social ilimitado. Aqui e ali ouvimos reais protestos contra o abandono dessas regiões, protestos que soam como convites de posse, como se a Amazônia e o Oeste fossem terras de ninguém.

Enquanto eles chiam, Brasília cresce, os caminhos se abrem, novos núcleos populacionais são fixados, articulando um sistema de autodeterminação, materializando nosso direito sobre aqueles territórios.

Temos todos a obrigação de verificar – independente de convicções ou velhos preconceitos – que o Brasil ergue Brasília em cima da hora, como um padrão de posse.

Imaginemos a pior hipótese: se a construção de Brasília houvesse sido embargada pelo meio, e os brasileiros tivessem deixado no Planalto as ruínas de seu futuro, um monumento de pedra à incapacidade de conquistar e disciplinar a vasta área que lhes resta. Que argumentos deliciosos teríamos ofertado de bandeja aos que insistem em namorar a região como um celeiro internacionalizável.

Pelo contrário, Brasília foi o maior ponto a favor que conseguimos na competição das nações modernas. Mostrou determinação. Visão social e histórica. Capacidade técnica. Mostrou a qualidade mais admirável do ser humano, que é a de encontrar soluções rápidas e imaginosas para as situações aparentemente sem saída. 

Até o timing da construção de Brasília pode ser considerado, à parte, como uma obra, agora invisível, de virtuosismo. Sem essa ligeireza fora do normal, dissensões internas provavelmente teriam truncado o prosseguimento da iniciativa. Mas o mundo pode contemplar uma cidade surgindo no deserto em ritmo de truque cinematográfico.

Isso foi possível pela conjugação ocasional de três homens: um presidente obstinado; Lúcio Costa, todo discernimento, possuidor das lentas observações que lhe permitiram traçar o plano-piloto como quem brinca de urbanista sobre uma folha de papel; Oscar Niemeyer, cabeça de arquiteto e mão de artista, preparado para criar a qualquer momento o certo e o belo.

Brasília comove. A mim comove. Sei que uma praça e uma casa são belas quando me comovem. Mas não conheci pelo mundo qualquer outra cidade que me comovesse em sua integridade, só pela compressão estética de suas linhas, independente de sua história ou de minhas motivações subjetivas.

Essa comoção me bastaria, se eu também não visse ali, envolvendo as massas arquitetônicas e os vazios esculturais, uma ordem mais concêntrica, uma ideia que se multiplica e oferece espaços vitais mais afáveis, uma sugestão para relações mais justas e leais entre os habitantes de cidade, uma concentração mais harmoniosa de possibilidades humanas.

Goethe dizia que os animais estão sempre tentando o impossível e conseguindo-o e que era esta a missão dos homens.

Brasília é um convite para que os brasileiros tentem o impossível: uma ordem limpa; a solidariedade social dentro da multiplicidade dos interesses humanos.

paulo-mendes-campos
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