Bem, vão mudar a capital — ou como me perguntava certa garota: como é que eles vão mudar o Rio de Janeiro todo? Pergunta de criança, mas que tem o seu fundamento. Porque para mudar uma capital há que mudar também o seu espírito — não são apenas as casas e as repartições. Nem por transferir o Senado e o palácio presidencial para planalto goiano se estará transferindo a tradição da cidade, estar-se-á despojando o Rio dos seus 300 anos de liderança, o que afinal de contas representa pelo menos um direito adquirido.
Pensam os simplistas que sucederá conosco o mesmo que se dá com New York e Washington — mas não será assim. Porque New York sempre foi uma espécie de cidade livre, ou de cidade hanseática, franco-atiradora, sem pretensões a governar o país, antes divergindo dele em quase tudo. E o Rio, há séculos, vem sendo para o Brasil o que é a cabeça para o corpo-coordenador, o centralizador de toda vida intelectual, política, social, a capital absoluta de todas as províncias, tão ligado à vida nacional quanto Paris é ligada à vida da França. Até mesmo a rivalidade com a Bahia nunca foi muito longe: nem os próprios baianos a levaram a sério e eles, iguais a nós todos, sempre só sonharam com o Rio.
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Mas não é propriamente o Rio que me preocupa na mudança da capital — que o Rio cuidará de si até muito bem. Mais me preocupa a ideia de ver o planalto central violado na sua pureza e na sua inacessibilidade, é o planalto “civilizado”, contaminado, vencido. Antes de termos realmente conquistado e possuído todo o resto do Brasil descoberto, já avançamos para o Brasil desconhecido; continuamos com o nosso velho sistema de roças e queimadas, inutilizando terra sem realmente cultivar nenhuma, porque cultivo é adubo e arado e não apenas machado e fogo. E vamos espalhando mais a pobreza e o atraso, e depois do planalto central virá a Amazônia, e onde há hoje inocentes malocas de índios nus haverá favelas, e nas belas cachoeiras desconhecidas os matarazzos tirarão lucros extraordinários, e os meninos e as raparigas ficarão tísicos, e haverá câmbio-negro onde ainda agora se vive da caça e da pesca, e às doenças naturais dos xavantes acrescentaremos as nossas doenças, e ao seu analfabetismo somaremos o nosso analfabetismo.
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Pena é eles não poderem carregar consigo os ministérios — o da Fazenda com os seus tocheiros de cobre, seus mármores e o seu banheiro de Pompadour, o da Guerra na sua pesada e elefantina feiura de palácio prussiano, o do Trabalho naquela miséria arquitetural que tão bem se casa com as suas tradições políticas; bastaria que nos deixassem o da Educação, que a gente oficial sempre repeliu, e a cidade poderia nele instalar os seus paços, dando uso e realce àquela graça aérea, tornando verdadeiramente sua a mais fina joia do seu patrimônio. Mas aí, isso são sonhos. Os burocratas irão para o planalto e nos deixarão os seus mastodontes, e lá na chapada erguerão outros, irmãos gêmeos dos abandonados; e nos novos palácios oficiais será gasta toda a verba destinada à capital e, como sempre acontece, o dinheiro não chegará então nem para hospitais, nem para escolas, nem para nada que sirva realmente ao povo.
Console-se o carioca lembrando-se que, perdendo os seus foros de capital, perderá o Rio igualmente os seus grilhões. Passará a cidade a ter o que de direito é conferido ao mais humilde burgo do país: o direito de se governar. Deixará o Rio de viver sob a ditadura do seu prefeito nomeado, terá prefeito da sua escolha, e leis votadas pelos seus representantes, e afinal se liquidará com a anomalia de estar a população mais adiantada, mais politicamente educada, os dois milhões de pessoas mais civilizados do país reduzidos à condição de indígena canibal em possessão europeia: sem direito político, sem governo próprio, sem casa legislativa, vivendo sob o tacão de um vizo-rei. Que direito, aqui hoje em dia, só temos em verdade um: o de apanhar e em seguida dar viva ao nó de peia.