Prova de atletismo durante torneio universitário, São Paulo-SP, 1942 circa. Foto de Thomaz Farkas/ Acervo Instituto Moreira Salles.
A não ser uns poucos de nós, não há quem não tenha o coração invadido por variável grau de solenidade e emoção ao ver aproximar-se o instante em que o ano envelhecido cederá lugar a um novo, cuja virgindade haverá de autorizar apostas e esperanças. Em relação ao que se foi, com suas rugas de tristeza ou mesmo de felicidade, balanços fatalmente vão se impor.
Balanços amargos, muitas vezes – e nem se está falando (ainda) deste teratológico 2020, que já no primeiro segundo de 2021 nos dará vontade de principiar assim nossas memórias dele: “No ano felizmente passado...” Se ainda estivesse aqui, José Carlos Oliveira no mínimo reprisaria o que escreveu em “Notas negras”, ao cabo de um réveillon no início da década de 1960: “A minha solidão está ardendo como pimenta”. “Chorando de saudade do futuro”, ele talvez pedisse, com redobrada ênfase, “uma crença, uma esperança”. Mas poderia também, quem sabe, mostrar-se menos deprimido, como acontece na “Mensagem de Natal”, na qual, não sendo animador o panorama, ele nos propõe “começar tudo outra vez”, “viver novamente como se fora uma novidade”.
Rachel de Queiroz, mais pé no chão, em diversas ocasiões ocupou com balanços do ano a sua última página na revista O Cruzeiro. Em “No ano da graça de 46”, voltou os olhos para o “incrível 1945” que ficara para trás, marcado como poucos por grandes acontecimentos, entre eles a estreia da bomba atômica, o fim da II Guerra e, no Brasil, a volta dos pracinhas, a anistia arrancada ao ditador Vargas, a derrocada do Estado Novo e, tanto tempo depois, eleições. Mas Rachel, nesses balanços, quase sempre se mostrava amarga. A revisão que fez de 1957 em “Ano velho, ano novo” lhe pareceu caber em três palavras: “foi tudo péssimo”. Outras três resumiriam seu estado de espírito quanto ao 1958 que começava: “Não esperemos melhoras”. Na “Meditações de janeiro”, escrita nos primeiros dias de 1959, ao arrolar o que via de mais auspicioso, registrou notícias vindas do exterior, como “a vitória de Fidel Castro enxotando o repulsivo sargentão Batista”.
Mais divertido foi Paulo Mendes Campos ao servir ao leitor, em três finais de ano, na década de 1950, seletas de pérolas que havia publicado nos últimos doze meses em sua coluna no Diário Carioca, todas – uma boa meia dúzia – tendo “Balanço” como título. Uma delas "Balanço – 1" recupera bilhete deixado num restaurante ordinário do Leblon: “Em matéria de comida só não há falta de cabelo”. Outra, Paulo garimpou num guia americano para o amor: “Bastam duas pessoas para discretamente trocar um beijo; mais gente atrapalha a festa” “Balanço – 4”. Pinçou também este argumento de um amante das touradas: “Um verdadeiro touro prefere morrer combatendo do que anonimamente num matadouro" Balanço – 5".
O mês de dezembro de 1991 pegou Otto Lara Resende malestarento (ele adorava esta palavra inventada por Mário de Andrade): às voltas com uma gripe “que obtura a minha sensibilidade”, em “Bula do egoísmo gripal” ele fala de um Brasil que lhe parecia sitiado “por toda sorte de mazelas”, entre elas o vibrião colérico que ameaçava apossar-se do Rio de Janeiro. “O Brasil é um vasto hospital”, lhe ocorreu resumir, desempoeirando uma frase proferida pelo médico sanitarista Miguel Pereira em 1916.
Duas semanas mais tarde, em “A graça de esquecer”, Otto já não fala daquela macacoa que o atormentara, mas nem por isso se mostra mais animado. Visto em retrospecto, aquele ano de 1991 – que aliás seria o penúltimo de sua vida – grande coisa não lhe terá parecido, tanto que o cronista nos propõe “um critério seletivo” de esquecimento. Afinal, argumenta, “a vida seria insuportável se nos lembrássemos de tudo que nos aconteceu”. Diante disso, “esquecer é uma operação tão essencial à vida como lembrar”. Uma vez mais, Otto Lara Resende cuida de reforçar com luz alheia a sua própria sabedoria, e desencava um livrinho escrito em francês (Pensées détachées et souvenirs, de 1906), no qual Joaquim Nabuco sugere acrescentar-se ao hagiológio cristão uma Notre Dame de l’Oubli, Nossa Senhora do Esquecimento.
Agnóstico de carteirinha, ainda assim é possível que Rubem Braga aceitasse abrir exceção para a entidade proposta por Nabuco – ao menos, quem sabe, como lenitivo para a melancolia que impregna suas crônicas de fim de ano. Numa delas, o Braga está numa festa, mas encontra mais interesse na contemplação do que se passa na sala de um apartamento em frente, onde as pessoas, lê-se no delicado texto de “Janela”, “não pareciam gente, mas brinquedo de gente, um ingênuo presepe civil”.
No delicioso “A companhia dos amigos”, depois de nos contar peripécias futebolísticas na praia de Copacabana, das quais participaram escritores e artistas, inclusive ele, na qualidade de “beque” – como então se chamava um zagueiro –, Rubem anuncia réveillon na casa de um daqueles improváveis atletas, Vinicius de Moraes, e antevê uma noitada em que, malgrado a companhia de gente querida, ele estará melancólico ou bêbado, mais provavelmente uma coisa e outra. Com que outro ânimo poderia estar quem se dá conta de que “ultimamente têm passado muitos anos”? O que pode ser até alentador, diante de situações ruins que deem a impressão de eternizar-se. Nas breves linhas de “Passa”, o cronista nos recomenda não desesperar: “De um modo ou de outro, com a minha longa experiência, tenho a impressão de que no fim do corrente mês de dezembro o ano passa".
Se valer para este inacabável, tormentoso 2020, que nos sirva também outra receita do Braga, esta em “Votos para o Ano-Novo”, onde ele deseja a todos nós “muitas virtudes e boas ações e alguns pecados agradáveis, excitantes, discretos e, principalmente, bem-sucedidos.”