30 dez 1991

A graça de esquecer

Periódico
Folha de S.Paulo

Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.

RIO DE JANEIRO Tipo do sonho impróprio para o começo do ano. Fui tão longe no passado e fiz uma tal mistura que nem dá para entender. Muito menos interpretar. Acordo e fico meditando no mistério da memória. Uma vez escrevi sobre a graça de esquecer. Sim, é uma graça que devemos agradecer a Deus. Quem não acredita em Deus agradeça aos seus neurônios. Ou à sua sinapse. Para sobreviver, para continuar vivendo, é fundamental esquecer.

Quem o diz são os especialistas que estudam e pesquisam o mecanismo da memória. É um mecanismo complexo, com segredos impenetráveis. A ciência olha e conclui que a vida seria insuportável se nos lembrássemos de tudo que nos acontece. Pegue por exemplo um garçom de lanchonete. Com um pouco de prática, é capaz de guardar um bom número de pedidos sem anotá-los. Não precisa de uma memória prodigiosa exatamente porque consegue esquecer.

Sim, à medida que retém, e retém cada vez melhor à medida que se exercita, é também capaz de apagar o que já não lhe é útil. Esquecer é assim uma espécie de válvula de escape. Lembrar o essencial só é possível porque podemos esquecer o que já não é essencial. Há coisa de uns poucos anos, tive um acesso de maluquice e resolvi entender os caprichos da memória. Esqueci depressa o amontoado de conhecimentos que digeri mal. Guardei a agradável certeza de que, também no plano afetivo, esquecer é uma operação tão essencial à vida como lembrar.

Deve ser por isto que Joaquim Nabuco num momento inspirado inventou a Nossa Senhora do Esquecimento. Um homem público, por exemplo, tem de ser devoto dessa indispensável "Notre Dame de l'Oubli". Nabuco escreveu isto em francês, como era comum no seu tempo. Hoje a coisa mais comum do mundo é dizer que o Brasil é um país sem memória. Talvez seja mesmo. Um amigo me diz que só um velho demente vive a se lembrar do passado recente. Rima e quem sabe é verdade.

No limiar de um novo ano, é o caso de bancar o garçom da lanchonete. Não estou pregando a impunidade, nem a indiferença. Muito pelo contrário. Prego um critério seletivo. Imagine se a gente fosse lembrar tudo de ruim que aconteceu no ano passado. E antes, e antes. O Brasil tem toda razão de esquecer. Um país sem muita memória pode entrar mais leve no futuro. Sejamos otimistas ao menos uma vez no ano. Se a gente esqueceu, é porque não era essencial. Por falar nisto, esqueci o sonho que mencionei lá em cima. Se esqueci, não faz falta.

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