Almoço, Chácara Arara, Londrina-PR, 1940 década. Foto de Haruo Ohara. Coleção Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Vários dos cronistas de nosso Portal fizeram da boa mesa uma de suas mais apetitosas musas, e não deixa de ser curioso o fato de que, entre eles, quem mais tangeu essa lira específica foi justamente um magro, o mineiro Paulo Mendes Campos. Nada indica que ele fosse parco em carnes porque jejuasse – ao contrário, basta ver o ardor de gourmet, eventualmente de gourmand, glutão em francês, com que Paulo proseou sobre comida (e, mais ainda, bebida). Se pilotava um fogão, não se sabe, mas dúvida não há de que no garfo & faca, além da escrita, ele era um craque. Quem mais, no afã de explicar a uma “gringa” – provavelmente a inglesa Joan, com quem se casou – o que vem a ser um bolinho de feijão, essa versão mineira do acarajé baiano, tomaria com ela um avião no Rio, imediatamente, para uma apresentação presencial em Belo Horizonte? A história, contada em "Bolinho de feijão", teve final inesperado.
Sempre nostálgico da terra que trocou pelo Rio aos 23 anos, Paulo Mendes Campos dela guardou memórias gustativas indeléveis. Uma em várias: a Confeitaria Suíça, merecedora da fatia mais gorda e suculenta de "Rua da Bahia", estabelecimento cujas portas ele transpunha “como o pecador entra no Paraíso”, propriedade de duas senhoras estrangeiras “vestidas de uma carne que já nos fazia pensar na leveza da alma”. De Minas lhe vinha também, destilada em "Aires da Mata Machado escreveu...", a lembrança de almoços dominicais protagonizados por tentações como o tutu com linguiça, o leitão assado, o frango ao molho pardo e o maneco-sem-jaleco, mingau de fubá bem cozido com couve rasgada. Numa localidade infelizmente não identificada, havia, conta o cronista em "Na velha cidadezinha mineira...", quem preparasse “as melhores empadinhas de galinha do mundo inteiro”, notabilizando-se também por um estratagema certeiro a que recorreu para se vingar de quem tentasse lhe passar a perna.
No Rio, Paulo ligou-se de amizade a um arquiteto e pintor paraense, Raimundo Nogueira, que, dono de legendária incapacidade de resistir a qualquer pitéu, lhe serviu inspiração para um punhado de escritos. Faz uma divertida ponta em "Carta a um amigo", onde causa espanto ao recusar um filé com fritas, alegando já ter almoçado, para em seguida mudar de ideia. É o Mundico da "Crônica para inapetentes", na qual seu “apetite universal” passeia gulosa e gostosamente por um extenso cardápio, sem enjeitar um só item. Com nome e sobrenome, e sempre de garfo em punho, o camarada é personagem, ainda, das deliciosas "Raimundo e a vida" e "Belém do Pará".
Farto em carnes, ao contrário do colega mineiro, o pernambucano Antônio Maria também tem o seu baú de recordações de infância bem servida. Dele salta, em "Lembranças do Recife", o lanche, afinal magro – café e meio pão com manteiga Sabiá – a que tinha direito após o sacrifício da missa no Colégio Marista, com a condição de ter comungado. Em casa, pela mesma época, o menino Maria, único feinho entre quatro irmãos bonitos, iria descobrir que era o preferido da mãe, pois a ele, sem palavras, cabia a fatia mais caprichada do bolo, a talhada maior do requeijão. “De pena, não era”, decidirá ele quarenta anos mais tarde, em "A mesa do café", “porque pena é uma coisa e amor é outra”.
Já Rachel de Queiroz, em vez de baú, tem estante, e, nela, um exemplar de um livro de Dante Costa, nutrólogo dos mais acatados de seu tempo (viveu de 1912 a 1968), sobre os hábitos alimentares da nossa gente. O título, com jeito de divisa em bandeira, é o mesmo da crônica, "Alimentação e progresso". O brasileiro, conclui Rachel, “come mal quando não tem recursos para comer bem e continua a comer mal depois que os recursos lhe sobram”. O último (e gordo) parágrafo é dedicado ao substantivo “desjejum”, cujo introdutor na língua portuguesa, afirma ela, teria sido Dante Costa. Talvez tenha mesmo: segundo o dicionário Houaiss, é de pouco antes, de 1942, o primeiro registro escrito de “desjejum”. Palavrinha “muito feia”, acha Rachel, mas “dessas feias úteis”.
Se Paulo Mendes Campos foi de bolinho de feijão, seu coestaduano Otto Lara Resende destacou outro petisco das Gerais, a propósito daquilo que em crucial momento da política brasileira, nos anos 1990, ficou conhecido como a “República do Pão de Queijo”: o grupo de auxiliares mineiros de que o vice Itamar Franco se cercou tão logo substituiu Fernando Collor na Presidência, em 2 de outubro de 1992. O salgado em questão, em "Difícil porque simples", lhe pareceu inspirador, composto que é pela “suculenta e universal palavra pão”, e “mineiramente de queijo”.
Não menos gostoso, outro bocado na preferência nacional seria, já no título, assunto de Otto em "O pastel e a crise" – pretexto menos do estômago que do coração para relembrar um de seus mais indispensáveis amigos, Rubem Braga, falecido nove meses antes. Um homem que, “no pequeno mundo do cotidiano, sabia como ninguém identificar as boas coisas da vida”. Otto lembrou então o dia em que, estando o Rio enfarruscado por um clima de greve geral, Rubem Braga desfranziu a testa do amigo com um convite para irem “ver a crise de perto”, no Bar Luís, centro da cidade, o que fizeram enquanto saboreavam salsichão com mostarda entre goles de chope claro e escuro. Estivesse ele ainda vivo, e Otto, em outra “hora de atribulação nacional”, o convocaria para um pastel de palmito na Zona Norte. Melhor companheiro não havia, achava ele, do que alguém que “tinha com a vida uma relação direta, sem intermediação intelectual”.
Não duvidará disso quem leia a crônica desde sempre clássica que é "Almoço mineiro", publicada pela primeira vez em 1934, quando Rubem Braga andava pelos 21 anos de idade. Quase nada se fica sabendo das pessoas em torno de generosa mesa em Poços de Caldas, no sul de Minas – e faz sentido que assim seja, já que o inanimado personagem central, ali, é um “divino lombo de porco”, “macio e tão suave que todos imaginavam que o seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil”. Nem por isso hesitam os convivas em retalhar tamanha maravilha, na qual a faca penetra “tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu”. Bem menos apoteótica é a mesa de que o Braga vai falar em "Sábado". Armada num dia “louro e azul”, nada de especial acontece – e nem carece que aconteça, uma vez que “a felicidade é uma suave falta de assunto”.