A boutade que vem à boca de todos, quando se leem livros como esse Alimentação e progresso de Dante Costa, é que o brasileiro carece primeiro de arranjar o que comer para depois fazer seleção do que comerá. Tem seu fundamento, quem o nega? E nem a boutade seria dita se não tivesse a sua leve base verdadeira. Porém, existe outra verdade mais sólida a esse respeito: é que o brasileiro, mesmo dentro das suas fracas possibilidades alimentícias, poderia comer melhor. Ele come mal quando não tem recursos para comer bem e continua comendo mal depois que os recursos lhe sobram. Ainda perdura no espírito da provinciana brasileira aquele preconceito romântico que considera “vulgar” ou “materialista” qualquer preocupação culinária. A boa dona de casa aprende a fazer doces, a enfeitar bolos — cozinhar propriamente é serviço grosseiro, indigno dela. Quantas mães de família do interior conhecemos nós que, depois de 20 anos de casamento, confessam desvanecidas serem incapazes de fazer sequer um arroz! (Aqui no Rio a dificuldade de empregadas já as disciplinou melhor.) E em todo o Brasil por onde tenho andado a regra de comer mal é a comum. Não só no Nordeste, não só no Amazonas, mas em Minas, no Estado do Rio, em São Paulo, no Paraná. Come-se errado nas casas abastadas e come-se miseravelmente nas casas pobres. O norte do Paraná, por exemplo, é o novo Eldorado nacional. Ali o dinheiro anda a rodo; segundo me dizia um cearense velho que encontrei por lá: “Dinheiro aqui, para valer alguma coisa, tinha que ser dólar. Cruzeiro não adianta mais”... O desperdício, o desequilíbrio, lembram o que se conta dos paroaras ricos na fase áurea da borracha. Mobílias de luxo escorando os tapumes de palmito nos ranchos; mulheres de vestido de seda carregando água na cabeça. Todo mundo falando só em contos e contos de réis, num delírio inflacionista. É o rush do café, muito parecido com o rush do ouro. E aí se observam a justeza e a inteligência das observações do dr. Dante Costa, quando acusa a monocultura de ser uma das causas principais da deficiência de nossa dieta. Primeiro a cana, depois o café. E, no norte do Paraná, a maldição da monocultura vem fazendo, como sempre, os seus estragos. Ninguém vai distrair um palmo da preciosa terra roxa que não seja com o café. Quando muito, enquanto o cafezal está pequeno, planta-se um pouco de feijão e milho entremeado. Mas, e quando o café crescer, onde se plantará? Não fica lugar para gado, nem para hortas, nem pomares, nem mesmo roçados de cereais de uso indispensável. Aquela gente toda está fadada a comer de importação — é claro — o feijão, a farinha e a carne-seca vindos das terras pobres e talvez umas latas de conserva nos dias de festa. Pelo menos por ora, nas plantações de café que se fazem nas antigas matas virgens da ribeira do Ivaí, só o que se come é o feijão e o arroz e nada mais. Nem ovos, nem carne, nem peixe, nem leite, nem legumes. Nem mesmo pela caça se interessam, embora por lá ainda exista muito porco-do-mato e alguma anta e veado.

No Nordeste, todo mundo sabe. É o feijão na água e no sal o ano inteiro. O doce é rapadura. Em algumas casas o pão de milho, ou cuscuz de fubá cozido ao vapor d’água. No mais, o velho feijão de corda, que cozinha em uma hora e é tolerável n’água e sal. O feijão preto ou mulatinho não querem por que são mais demorados de cozinhar e exigem toucinho ou carne-seca para tomar gosto. É uma das dietas mais miseráveis do mundo e creio que pode ser comparada ao prato de arroz eterno dos camponeses asiáticos.

Assim, portanto, quem está com a razão são os nutrólogos que, como o dr. Dante Costa, pregam a melhoria da alimentação do brasileiro, mesmo dentro da precariedade dos nossos recursos atuais. Que o problema, sendo basicamente econômico, não deixa de ser também educativo. Como exemplo, cita Dante Costa o caso de operários portugueses e brasileiros aqui no Rio, ganhando o mesmo ordenado, mas os portugueses se alimentando infinitamente melhor que os brasileiros. Porque uns sentem necessidade da alimentação rica a que estão habituados, enquanto os outros, treinados no jejum, reservam à mesa apenas uma parcela indispensável do salário e o resto vai para roupas, diversões, rádio.

A mulher mais pobre do mundo pode ter um canteiro de legumes no quintal; no entanto, a gente anda léguas e léguas de automóvel por esses sertões e não vê um pé de couve. Todo sertanejo possui uma cabra, ou várias cabras, mas raríssimo é o que aproveita o leite de cabra tão rico; tem-lhe até nojo, dizem que cheira mal.

Muita coisa se pode fazer com propaganda; pois, convencida a criatura de que tem necessidade disto e daquilo, passará a esforçar-se para satisfazer aquela necessidade. Se o brasileiro se convencer de que, ou come melhor, ou desaparece, achará meios de melhorar a sua dieta, mesmo dentro da sua pobreza atual. E talvez o esforço feito até o ajude a sair dessa pobreza, porque todo esforço é um passo para o enriquecimento. 

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Outro ponto que desejo assinalar no livro de Dante Costa é o “lançamento” de uma palavra que realmente falta na nossa linguagem para designar a primeira refeição da manhã. É o desjejum. Até agora designamos essa refeição como “café” e designamos muito bem, pois que praticamente só de café se constitui ela. Mas, se pregamos a sua ampliação e enriquecimento dietético, o simples nome de “café da manhã” já não lhe serve, é claro. A palavra desjejum confesso que a acho muito feia, mas é dessas feias úteis, pois não se sabe de outra mais autorizada. Todos que traduzimos romances estrangeiros, livros passados em terras civilizadas onde se come bem pela manhã, não encontramos palavra nenhuma que corresponda ao breakfast inglês, ou mesmo ao pétit-déjeuner dos franceses. (Aliás, em Paris e nas outras cidades grandes da França o pétit-déjeuner da gente modesta é simplesmente uma xícara de café e um ou dois croissants sem manteiga. Mas isso não vem a caso.) Tentemos, portanto, adaptar o desjejum, já que não se arranjou coisa melhor. Quebra-jejum diz-se no Norte para chamar a comida tomada de manhã cedo. (Escute-se o cantador: “Ninguém pode discutir — os gostos de cada um — Eu janto e ceio genebra — almoço cerveja preta — cachaça é o quebra-jejum...) Mas desjejum parece talvez melhor. Que fique e que sirva, portanto.

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