Através de minha ruína, pois, sem remorsos.
Menino só sabe que é feio no colégio, quando o padre escolhe os que vão ajudar à missa, os que vão sair de anjo, na procissão, e os que vão constituir a diretoria do Grêmio Mariano.
Eu soube que não era bonito, em 1928, no Colégio Marista do Recife. Nunca fui escolhido. Mas, sem a menor tristeza, sem concordar, até. Aquele julgamento era precipitado, pois (estava convencido) ainda não havia nada de definitivo sobre o bonito e o feio, a beleza e a fealdade. Quais seriam as demarcações? A exata limítrofe, quem seria capaz de determinar? Se não existia a explicação lógica do feio e do bonito, a notícia da minha feiura não me causava mal nenhum. Ao contrário, livrava-me dos tributos, que teria de pagar, se fosse bonito, ajudando missa e saindo de anjo, à frente das procissões.
Na mesa do café, éramos cinco irmãos. Havia bolo de mandioca, requeijão, bananas fritas, pão torrado e bolacha d'água. Éramos cinco irmãos e, dos cinco, quatro eram bonitos. Vá lá, eu era feio. Então, por que minha mãe gostava mais de mim? Ela, que nos zelava a todos, que nos conhecia pelo avesso e pelo direito, por que gostava mais de mim? De pena, não era, porque pena é uma coisa e amor é outra. Menino conhece. O gesto complacente, por mais carinhoso, é sempre vacilante e triste. O gesto de amor chega a ser bruto, de tão livre, alegre e descuidado.
Minha mãe gostava mais de mim. Eu sabia e ela sabia, que eu sabia. Em tudo a nossa cumplicidade. Na fatia de bolo, na talhada de requeijão e no sobejo do seu copo d'água. Nossa cumplicidade até hoje existe, quando de raro em raro, nos encontramos.
Da mesa do café, víamos pela vidraça, os canteiros de terra negra e as rosas de maio. Vinha o cheiro úmido da terra molhada, mais que o das pálidas rosas da minha infância.
Minha mãe e eu. Nossos olhos tão parecidos.
Minha mãe só tem um defeito. Não ser minha filha. Sempre foi metida a saber mais que eu.
Só soube que era feio, quando amei, pela primeira vez. Vi-me, então, corajosamente... e não era como gostaria de ser. No coração, um amor tão bonito. Ninguém iria acreditar, mesmo dizendo, mesmo eu explicando, mesmo eu jurando.
Apaguei a luz, tocava o Concerto n. 3, de Beethoven, e, no final, apesar do tom ser menor, o lirismo era tão ardente, que tudo ficou entendido, entre mim e a minha feiura: eu a amava e não a abandonaria até a morte.