A vida é esta, descer Bahia e subir Floresta. Quem não morou em Belo Horizonte, ao ouvir o mineiro suspirar num momento de cansaço e bobice – a vida é esta, descer Bahia e subir Floresta – não entende nada, e não entende errado, perdendo-se em noções falsas de selva e Estado baiano. Nada disso. A vida é descer a rua da Bahia, que tinha dois ou três quarteirões de cidade grande, de prazer; depois que se atravessava o estirão da avenida Afonso Pena, a rua da Bahia caía em declive desagradável para o vale das estações da estrada de ferro, ficava desolada, comprida, estéril, acabando por subir sem glória e sem esperança o bairro da Floresta. Era a vida.
Mas a rua da Bahia, em seus dois quarteirões comerciais, era a rua. Sem a vastidão da avenida, onde a alma provinciana ainda não se acomodava, contentando-se de admirá-la com orgulho, a rua da Bahia era naquele trecho a inquietação de todos os habitantes. Quem quisesse um cigarro de fumo fresco ou a extravagância de um charuto, ia para lá. Quem quisesse um bilhete de loteria – você ainda era criança e Giacomo já vendia sortes grandes – ia para lá. Quem sentisse um súbito desejo de sorvete, de chope, de empadinha quente, de moça bonita, de mulher casada elegante, de vitrinas modernas, de livro francês, ia para lá. Todos iam para a rua da Bahia. Todos a subiam ou desciam, solenes, disfarçando a inquietude, na esperança de um olhar, um encontro, uma aventura, um pecado. Pela rua da Bahia desfilava diariamente o tédio de Belo Horizonte, mas só o tédio que ainda reagia, o tédio vital de Madame Bovary, o tédio que aguarda o toque do anjo que transforma esta fade et morne existence em deslumbramento e delícia. Desconfio que raras vezes o anjo deu o ar de sua graça na rua da Bahia a fim de arrebatar uma alma e levá-la às esquinas celestiais. A mim, pelo menos, esse anjo quando muito me serviu umas vagas promessas de felicidade, trocadas pouco depois por alguns cálices de Madeira R, um pastel de carne, outro de queijo, uma empadinha de camarão, outra de palmito.
Mas, como todo mundo, enquanto vivi, nunca deixei de percorrer a rua da Bahia, única rua de Belo Horizonte que dava a impressão de poder conduzir-nos para fora de Belo Horizonte – uma chateação colante e quase indolor naqueles tempos. Contam mesmo a história patética de um repórter que, depois de fechado o jornal, ia vagarosamente subindo a pé a rua da Bahia, mais para cima, até a praça da Liberdade, seus passos ocos ressoando na mudez da madrugada, espreitando meio suado e trêmulo as casas todas, na esperança de que uma janela se abrisse e uma senhora linda o convidasse a entrar. Pois durante anos a fio, é claro, as janelas da rua da Bahia permaneceram herméticas como a virtude. A vida é esta.
Mas tinha uma coisa na rua da Bahia muito diferente e muito mais indescritível. Essa reluz na minha lembrança com as mil perturbações do mistério. É a Suíça. Ficava do lado direito de quem desce, depois do Trianon e antes do Café Brasil. Era uma loja pequenina de balas, bombons, doces, chocolates. Tudo ali (falha-me o advérbio) era sacrossantamente limpo. Era o asseio mesmo. A limpidez. A inocência. A castidade. Menino turvo, não reconhecia em mim a limpidez, a inocência, a castidade. Assim, que podia fazer para comer um bombom, senão violentar meu sentimento de culpa, quando pisava com meus pobres sapatos nos ladrilhos imaculados da Suíça? Se não me carregasse à força para dentro, que teria sido de mim? Como me fascinava a Suíça com seus vidros claríssimos, as madeiras lustrosas, o aroma que só podia ser o da candura! Como eu me contrastava atropeladamente com aquela linguagem purificada! Transpunha aquelas portas como o pecador entra no Paraíso. As proprietárias eram duas senhoras suíças ainda mais limpas do que a própria casa. Gordas, coradas, olhos do azul mais filtrado que existe neste mundo. Os cabelos, os cabelos eram de uma alvura que talvez só exista em bonecas… suíças. E eu lá. Foram as duas senhoras de idade mais iluminadas que jamais encontrei. Não digo espiritualmente, que disso nada entendia, digo apenas que aquelas duas estrangeiras eram materialmente iluminadas, vestidas de uma carne que já nos fazia pensar na leveza da alma. E eu lá, com a minha carne, complicado de gânglios, entranhas, glândulas, joelhos escalavrados, artérias latejantes, um triste. Saúde eu tinha, mas era um menino contagiado. Por isso mesmo vivia subindo e descendo a rua da Bahia.