Cores do preconceito

À direita, segurando o fundo, Maria Josefina Alkmim (Miquita), esposa de Chichico, Diamantina-MG, 1910 década. Foto de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Quando menino, lá na sua Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, Rubem Braga não tinha grande apreço pela nossa Independência, por ter sido proclamada por um português. Nem pela instauração da República, porque lhe dava pena a figura do venerando imperador deposto. Digno de admiração, para ele, era o “conto de fadas” da Abolição da Escravatura, protagonizado por uma princesa, a Isabel, que na sua fantasia era “muito jovem, muito loura e muito linda”. Caiu das nuvens ao saber que a heroína não era nada disso, e jamais se conformou “com aquele seu retrato de matrona gorda”.

No final da adolescência, o Braga possivelmente se decepcionou, por mais de uma razão, quando, vitoriosa a Revolução de 30, Getúlio Vargas acabou com o feriado de 13 de maio. Mais adiante, já entrado na idade adulta, solidarizou-se com sua empregada e com um ascensorista, ambos de origem africana, tristes por verem passar em branco, em mais de um sentido, o aniversário do fim da escravatura. “Todos”, registrou Rubem em a “Abolição”, “principalmente os negros, em geral pobres, continuamos mais ou menos escravos.”

Pela mesma época, visitando as ruínas do que foi no século 19 uma cintilante fazenda de café e cana de açúcar na região de Vassouras, ele topou com “velhos ferros de prender escravos”, e, no interior de um casarão destroçado, por pouco não pôde ouvir o ruído das botas senhoriais que outrora ali ressoaram. Tudo aquilo, escreveu na crônica “Fazenda”, eram restos de uma “nobreza fundada apenas no trabalho dos pretos”, na “rotina torpe da escravatura”.

Sua colega Rachel de Queiroz mais de uma vez tratou do tema da questão racial – tocada que foi, por exemplo, no comecinho dos anos 1960, pela tragédia da segregação dos negros num país distante ainda de ter em seu comando o líder Nelson Mandela. Diante da crueldade do apartheid, a escritora cearense criticou, em “O drama da África do Sul”, os brasileiros que lamentavam (por certo há quem lamente ainda) não ter durado para sempre a invasão holandesa, que nos teria dado mais que a portuguesa. Falta de saber ver, sustentou Rachel, os horrores perpetrados, no extremo sul do continente africano, por invasores que, também vindos da Holanda, ali cravaram garras a partir de 1652.

Já em “Josephine e sua associação antirracista”, a propósito da criação do braço brasileiro de uma entidade de luta contra o preconceito de raça, louvável iniciativa da cantora Josephine Baker, a cronista cearense julgou útil alertar para o risco de cair-se no extremo oposto, num movimento em que minorias revanchistas acabariam incorrendo “num racismo igualmente estreito”. Em “A Lei Afonso Arinos”, Rachel aplaude a prisão, no Rio de Janeiro, dos responsáveis por um jardim de infância de Copacabana, por ironia chamado “Happy School”, no qual um menino de 3 anos foi devolvido aos pais pela razão de não ser branco como seus colegas. Aplicou-se ali a Lei Afonso Arinos – denominação informal que, como se sabe, faz justiça ao deputado que propôs e obteve, em 1951, a punição de quem incorra em discriminação racial.

Veemente também quando vê razões para louvar, em 1947 Rachel de Queiroz saudou, com “O negro no futebol brasileiro”, o lançamento do livro assim intitulado, do jornalista Mário Rodrigues. Tratava-se, avaliou, de nada menos que “uma espécie de ‘Ilíada’ do futebol brasileiro”. Ao destacar a “linguagem plástica, suave, generosa” do autor (irmão, aliás, de Nelson Rodrigues), Rachel viu ocasião para esbordoar “o jargão escumoso e mirabolante, de anunciador de circo” de “cronistas e locutores esportivos”, naquela era pré-televisão em que o futebol era narrado com exageros radiofônicos.

O mesmo livro, obra imediatamente clássica, será recomendado também, muitos anos depois, por Otto Lara Resende, em “Entrada de serviço” – não exatamente pela linguagem, mas como ilustração de um tempo em que “o ‘violento esporte bretão’ era esporte de gente fina, isto é, de branco”. Falou do racismo à brasileira, “camuflado”, no qual o uso da expressão “boa aparência” costuma significar pele branca. O assunto leva Otto a uma reportagem na qual se criticava a existência de entrada de serviço nos edifícios. “Errado e ilegal”, diverge ele, não é a entrada de serviço, que tem razão se existir, mas “proibir as domésticas de tomar o elevador social”.

Em “A forra dos forros”, Otto investe contra “a balela da democracia racial” brasileira, e lembra que Abolição não teve o dom de integrar os libertos. De fato, o que aconteceu a partir daquele dia em que Isabel empunhou sua pena de ouro? “Os 750 mil escravos de 1888, enfim libertos, iniciaram a favelização.” Num 13 de maio, o de 1991, em “Convém discutir”, Otto está certo de que “a Lei Áurea não foi assim tão áurea”. E como fica a princesa? “Assim como os movimentos negros não aceitaram a mãe preta, de sabor romântico”, aponta o cronista, “também não aceitaram a mãezinha branca que foi, ou teria sido, a redentora”.

“Racismo é, de fato, uma praga”, lembra Otto Lara Resende em “Palavras que ofendem”. Nem por isso, acrescenta, se deve aceitar que em nome dele se chegue a excessos até cômicos – como um movimento que então (o ano é 1992) se armara em Washington, cidade onde os negros são maioria, com o objetivo de mudar o nome do time de futebol americano Redskins, para não passar a ideia de que os jogadores seriam índios peles-vermelhas. Se a moda pega, brinca Otto, dali a pouco não se poderia chamar de “rubro-negro” um atleta do Flamengo, porque isso significaria vê-lo ao mesmo tempo como índio e descendente de africano.

Num tempo em que ainda não se usava o rótulo de “politicamente correto”, Otto viu o perigo de que, em nome do combate ao racismo, se promovesse “um expurgo de bom tamanho” no vocabulário. “Muitas palavras vão ser cassadas”, profetiza ele – e, mesmo falando a sério, não resiste à tentação das peraltices verbais em que era mestre. “Parece humor negro”, observa – para imediatamente pôr-se em guarda: “Se é que esta expressão já não entrou na lista negra, como racista. Lista negra? Ih, piorou!”