Já tenho ouvido de muito brasileiro ingênuo ou mal aprendido o comentário de que foi uma pena não se terem os flamengos fixado definitivamente no Brasil. Ah, outro galo nos cantara! Teríamos progresso, futuro e não esse descalabro ibérico que nos legou a colonização portuguesa...
Pois isso que agora acontece na África do Sul é uma amostra do que seria de nós se a insurreição pernambucana não houvesse posto fora do Nordeste o invasor holandês. Flamengo pode ser muito bom na terra dele. (Não posso dizer a frase corriqueira — que eles podem ser bons para as negras deles, porque é para as negras deles, evidentemente, que eles são péssimos...) Flamengo tem altas virtudes, mas é um fato que sua atuação colonial durante mais de três séculos e em vários continentes demonstrou que ele não sabe conviver em harmonia com povos de origem racial diferente da sua. E eis por que tenho um certo medo dessas colônias holandesas que ora se estabelecem no Brasil. Muito boas, muito limpas, muito trabalhadeiras — mas não se estará formando em cada uma delas um quisto racial insolúvel, uma minoria intolerante e inassimilável?
Ontem alguém perguntava: que é que faz com que um povo aparentemente instruído, politicamente adiantado, acredite estupidamente que nasceu para senhor, que a cor da sua pele e a conformação do seu nariz o fadam a desprezar e escravizar outros homens que têm pele e nariz diferentes? A resposta é simples: um dos aspectos mais invariáveis da natureza humana é a capacidade de acreditar sinceramente e até mesmo fanaticamente, naquilo que lhe convém. Se eu preciso de um negro para trabalhar no meu roçado ou na minha mina, imediatamente me convenço que o bem e o destino do negro não é vaguear à toa nos matos, mas plantar a minha cana ou cavar a minha mina. Para a mina ou para o eito é que Deus o pôs no mundo, não para uma inútil liberdade.
Graças a esse mecanismo da mente humana, as maiores monstruosidades se praticam — e sinceramente — em nome do bem. Esse horrendo Hendrik Verwoerd, com as suas duas balas encravadas no rosto, provavelmente se considera o mártir de uma causa santa. Todos sofremos a necessidade instintiva de praticar coisas certas, ou pelo menos de receber a aprovação da demais humanidade, ante o que praticamos. Assim, se eu exerço um ato de violência contra outro ser humano, a minha censura, a minha consciência, o meu anjo da guarda, seja lá o que for, imediatamente me acusa pelo crime cometido. E eu, então, que não quero renunciar às vantagens da minha violência, mas também não quero ser chamado criminoso, invento para minha justificativa um motivo irretorquível, retumbante, se possível de caráter religioso e, portanto, irrespondível, sob pena de sacrilégio. No caso do negro, falado acima. Em vez de reconhecer que o escravizo, convenço-me de que o negro é um irresponsável, incapaz de viver sem a minha ajuda; o trabalho a que o forço é a disciplina indispensável ao seu próprio bem; solto, ele ficaria entregue à miséria, à bebida, ao pecado. No fim acabo me proclamando a benfeitora do negro, destinada por Deus à sua salvação... Uma vez convencida disso, torno-me invulnerável. Crio mesmo um dogma em torno daquela convicção. Se sou governo, crio lei a respeito e faço ampla catequização. E todos os que se beneficiam do meu regime passam também a acreditar fanaticamente e, o que é pior, sinceramente, na honestidade dos nossos postulados.
Se não fosse esse artifício da mente humana, muito mistério social não teria explicação. Esses brancos da África do Sul, que friamente fazem massacrar negros desarmados, provavelmente não são assassinos contumazes; talvez até sejam bons pais de família e tementes do que eles consideram a lei de Deus. O sr. Jânio Quadros, comentando outro dia o drama da África do Sul, disse numa frase generosa que não compreendia como é que naquela terra havia igrejas. A mim parece que a explicação é esta: eles se convenceram do seu direito divino sobre os negros, convenceram-se de que a Providência os destinou a oprimir e explorar aquela raça nascida para serva dos brancos. E, em vista disso, sentem-se em paz consigo, e ainda pedem troco a Deus pelas suas boas obras. Fenômeno idêntico explica por que o sr. Salazar, homem de rígida formação religiosa e celebrada moral privada, chefia uma ditadura de opressão e impostoria; é que Salazar se convenceu de que é o desejado, o Messias da gente portuguesa. E quem se revolta contra a pessoa ou os privilégios do salvador é culpado, não de oposição a um homem fanático e mau, mas de atentado contra a própria nacionalidade. Assim se justificaria Hitler nos paroxismos da sua loucura assassina; assim se justificam os brancos racistas dos Estados Unidos. Isso explica por que nas guerras ambos os beligerantes estão certos de que Deus está do seu lado.
Aliás, assim também se justifica qualquer criminoso.
Todos têm a sua alegação perfeita. Ninguém diz que matou ou roubou porque é mau, degenerado ou louco. O sujeito que isso confessasse a si mesmo, provavelmente se suicidaria: dentro de tal evidência ser-lhe-ia impossível continuar a viver consigo próprio.
Foi o que aconteceu com Judas, entre outros.