Ouça a crônica de Otto Lara Resende na voz do jornalista Luiz Fernando Vianna.

Vejo com simpatia qualquer tentativa séria de pesquisar e rever certos pontos da nossa história. Há muitas maneiras de analisar o passado, que nem por ser passado deve ser morto e estático. Afinal, para ser mestra da vida, como dizia Heródoto, a história tem de ser um organismo vivo, nervoso e controvertido. Sempre sujeito a novas autópsias, desde que feitas com seriedade.

No caso da Abolição, por exemplo. O centenário, há três anos, passou quase em brancas nuvens. De qualquer forma, a data se presta ao bate-boca. A versão cor-de-rosa e lírica, que aprendemos na escola, vem sendo questionada. A Lei Áurea não foi assim tão áurea. Teve mérito, claro. Um deles foi ser simples. Tecnicamente perfeita. Só dois artigos. Está extinta e revogam-se as disposições em contrário.

A princesa regente, coitada, virou personagem discutível. Assim como os movimentos negros não aceitam a mãe preta, de sabor romântico, também não aceitam a mãezinha branca que foi, ou teria sido, a redentora. Assinou a lei, isto é verdade. Mas não redimiu ninguém. A escravatura era uma mancha negra. Perdão, talvez uma mancha branca. O patrulhamento neste campo hoje é fogo. Se você diz que a coisa ficou preta, é racista. O melhor é dizer que ficou roxa.

Os americanos acabaram com os escravos 23 anos antes de nós, em 1865. E foi preciso uma guerra civil. Um morticínio. Aqui, a doce princesa regente deitou o seu jamegão no pergaminho e pronto. Já raiou a liberdade no horizonte da senzala. Há quem diga que, indo fundar as favelas, os escravos pioraram de situação. Pode ser exagero, mas às vezes convém exagerar. Só com exagero a denúncia aparece.

Há um século, pouco mais, era uma vergonha o Brasil ainda ter escravos. O pior é que muita gente sustentava a legitimidade da escravidão. Por isto mesmo é preciso também não desmerecer o valor dos abolicionistas. Os notórios, como Nabuco, e os hoje injustamente obscuros, como Joaquim Serra. A ideia abolicionista vinha de longe, mas encontrava forte resistência. Ontem como hoje, mais do que o conceito, o preconceito deita fundas raízes na alma conservadora.

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