Ora bem que o futebol brasileiro já vai tendo os seus clássicos. De tantos cronistas esportivos criados pelo “esporte bretão” neste seu meio século de existência, haviam-se de apurar escritores reais, que levassem a sério não só o futebol como o próprio ofício de escrever, tratando o assunto com a dignidade que ele merece. Uma coisa não se torna a paixão favorita de um povo sem adquirir importância capital na vida daquele povo; e logicamente passa a exigir da parte de artistas e estudiosos esforço honesto e cuidado amoroso no trabalho da sua história e interpretação.

O grande José Lins do Rego, no romance Água mãe, já introduzira na galeria de tipos da novelística nacional a figura ainda inédita do jogador de futebol e o seu drama: a ascensão difícil, o esplendor, a decadência. Graças a Água mãe, Joca, o mulato pé de ouro, ficou sendo respeitável personagem literário, e pode ser citado junto com a Moreninha, o índio Peri, e até mesmo Capitu.

Agora vem Mário Filho e publica o seu O negro no futebol brasileiro, que não é, como talvez o pense o leitor descuidado, uma coletânea de crônicas de futebol, anteriormente publicadas em jornal, e de interesse apenas para os aficionados do esporte. É o estudo exaustivo de um fenômeno social — a democratização, ou melhor, a mulatização (pois entre nós as duas palavras querem dizer praticamente a mesma coisa), de um esporte que desembarcou aqui com máscara de esporte para grã-finos e ricos, mas pelo qual o povo se apaixonou, do qual tomou conta, adaptou-o, transformou-o, e nesse trabalho de nacionalização deu-lhe nova vitalidade, novas características e, pelo menos para nós, novo interesse.

Essa lenta mulatização do esporte hoje chamado “das multidões” veio marchando paralela e proporcionalmente com o tamanho do lugar que ia ocupando no coração do povo, até chegar ao grau de paixão que atinge hoje.

De passatempo caro, para quem o exercia, passou a ser profissão regular. Foi saindo o branco fino do esporte que deixara de ser luxo de amadores abastados, foi entrando negro, e o povo o foi tomando para si. Ou talvez o processo tenha sido inverso: à medida que o povo foi tomando conta do futebol é que nele passou a ir colocando os seus expoentes, os seus ases mulatos, caboclos e negros, junto com os filhos de imigrante que também são povo e do bom. Como aquele Pascoal Cinelli, filho de italiano, analfabeto ou quase analfabeto, que passou a se chamar Pascoal Silva, porque o nome era mais fácil de aprender a “ferrar” nos papéis de inscrição.

Fica sendo assim este livro O negro no futebol brasileiro uma espécie de Ilíada do futebol nacional — história minuciosa, comovida, caudalosa, das suas origens e da sua grandeza, das suas lutas muitas vezes duríssimas. E o retrato dos seus heróis, os brancos apolíneos que as moças poetisas cantavam em sonetos parnasianos, os mulatos envergonhados como aquele Francisco Carregal que se esmerava no dandismo de calção para não se envergonhar junto dos ingleses, como Friedenreich, o craque legendário, filho de alemão com mestiça ou aquele Monteiro, herói impecável, que ainda não teve o seu cantor, mas que o merece e cujo nome peço ao escritor seja lembrado em primeiro lugar, quando der início às biografias que, segundo soube, tem intenção de fazer.

Para meu gosto o capitulo mais bonito do livro é justamente o que dá com a figura de Monteiro, e conta a vida dramática do clube Andaraí. Não sei de história mais bela, mais simples e mais humana do que a desse clube de homens humildes; é das tais histórias que ficam arquivadas nas coleções de jornais ou resumidas num capítulo de livro, quando mereciam e pedem aos gritos um romance, uma peça de teatro, uma fita de cinema — pura matéria-prima artística a exigir mão de mestre que a desdobre e imortalize.

Gabe-se ainda em Mário Filho a sua linguagem plástica, suave, generosa. Sirva ela de modelo, já não digo para a grande maioria de cronistas e locutores esportivos que se comprazem num jargão escamoso e mirabolante, de anunciador de circo, e são incapazes de chamar as coisas pelo nome — bola de bola, jogador de jogador; o autor das Histórias do Flamengo há muito que transcendeu desse gênero e pode servir de modelo é para muito escritor que se tem na conta de bom.

Muitos caminhos, e os mais inesperados, podem levar à genuína obra de arte. E o livro de Mário Filho veio provar que o futebol, paixão dos moleques, delírio das mocinhas de subúrbio, esporte nacional por excelência, é indiscutivelmente um desses caminhos.

rachel-de-queiroz
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