31 mar 2020
Humberto Werneck
Neste momento em que estamos – ou deveríamos estar – enclausurados em casa, muitos de nós sem quem nos faça companhia, há quem sinta falta, também, de palavras que em língua portuguesa deem conta das nuances embutidas na condição de quem está sozinho. Não nos basta, de fato, o substantivo “solidão”, sobrecarregado na empreitada de expressar estados sutilmente diversos. Problema que não tem o idioma inglês, servido por loneliness, aplicável quando a falta de alguém ao lado seja um peso no corpo e na alma, e também por “solitude”, para aqueles casos em que estar sozinho, longe de ser um peso, pode ser desejável. Até existe em português o termo “solitude”, mas como sinônimo menos utilizado de solidão....16 mar 2020
Humberto Werneck
Nascida numa região do Brasil em que tantos vivem de olho nas alturas, na esperança de salvadoras gotas d’água, Rachel de Queiroz um dia se pegou a reclamar justamente daquilo que os céus despejavam então sobre o Rio de Janeiro. Não era para menos: naquele verão de 1947, conta ela em “Chuva”, a impressão que se tinha é de que nunca mais teria fim o aguaceiro que encharcava o antigo Distrito Federal.
A Ilha do Governador, onde Rachel morava, lhe parecia prestes a se dissolver no mar, como torrão de açúcar. “Chuva miúda, chuva graúda, chuva inimiga, fria e molesta, que traz doença”, queixa-se ela numa crônica cujo título só poderia ser... “Chuva”. Não lhe bastasse o dilúvio incessante, numa daquelas noites veio... 2 mar 2020
Humberto Werneck
No momento em que o calendário traz de volta – 8 de março – o Dia Internacional da Mulher, fique aqui a sugestão de peneirar neste Portal um pouco do muito que sobre ela escreveram nossos cronistas. Para descobrir, entre outros achados, que poucos o fizeram com a assiduidade de Rubem Braga, o maior de todos. E descobrir também que, curiosamente, em seus enredos o Sabiá da Crônica quase nunca nos parece estar vivendo um amor correspondido.
No caso extremo de “Sizenando, a vida é triste”, por exemplo, ei-lo deitado, em manhã chuvosa, a imaginar sua inalcançável Joana, “meio tonta de uísque”, aconchegada àquele “palhaço”. A frustração do Braga não chega a tanto ao se ocupar de misteriosa dama, “A primeira mulher...14 fev 2020
Humberto Werneck
Para Antônio Maria, houve um Carnaval em que a ressaca veio antes da farra – se é que para ele teve farra naquele fevereiro de 1941, mês no qual, faltando “uns oito dias” para a folia começar, uma confusão doméstica levou o jovem (20 anos recém-completados) pernambucano a amargar uma noite de cana no Rio de Janeiro. A encrenca só não foi maior, conta ele em “A senha do sotaque”, porque... – bem, não antecipemos o inesperado desfecho da história. É possível que o Maria, por detrás das grades, tenha reencontrado um amargo porém essencial ingrediente das celebrações de rua que viveu em sua terra quando menino e adolescente: “Não tenho a menor dúvida”, diz ele em “Carnaval antigo... Recife”, “de que aquilo...31 jan 2020
Humberto Werneck
Assim como qualquer um de nós, que os lemos aqui na planície, também os grandes cronistas, na volta das férias, costumam trazer lembranças de viagem. A diferença é que, além de souvenirs convencionais, entre elas pode haver recordações em forma de literatura.
Às vezes nem memórias são, mas fantasias que uns dias vividos fora da base têm o condão de atear em nós, em especial quando se trata de profissionais da imaginação.
Penso, ao acaso, em Rachel de Queiroz, viajante que, ao lado de impressões trazidas do estrangeiro – veja “Suíça” e “Ir à Europa”, por exemplo –, algumas vezes se deixou levar, na hora de escrever, por algo que não trouxera na bagagem física. “A criatura”, escreveu ela na crônica...15 jan 2020
Humberto Werneck
Numa crônica prestes a se tornar septuagenária, mas ainda fresca e sem rugas, Rubem Braga fala do dia em que um poeta, dos maiores que tivemos, lhe contou de seu encontro casual, já fazia tempo, com uma bela moça, Maria. Cruzaram-se numa calçada, ele saindo de um bar, melancólico, ela radiante, de braço dado com o noivo – e desse breve encontro lhe ficou alumbramento inapagável: cravados nos seus, uns belos olhos cor de piscina.
Numa conversa com Maria, o cronista relatou o que ouvira do poeta, mas a jovem não se lembrava do encontro. Foi a vez de Rubem mergulhar, fascinado, na piscina do olhar da amiga. Só bem mais tarde, quase trinta anos depois, ao revisitar em seus arquivos aquela crônica de 1952, intitulada “Poeta”, o...31 dez 2019
Humberto Werneck
Como tantos de nós, Rubem Braga decididamente não morria de entusiasmo pelas festas de final de ano, quando menos por aquilo que elas costumam ter de alegria compulsória. Na sua deliciosa rabugice, o Sabiá da Crônica se permitia, em tais ocasiões, externar – por escrito, inclusive – uma quota de antipatia pelo inelutável vagalhão festeiro que a todos ameaça arrastar quando dezembro vai chegando ao fim.
Em “O menino”, por exemplo, de 1952, o Braga admitiu que, para ele e demais “inquietos” e “desorganizados”, as festas de Natal e Ano Novo, longe de serem um prazer, acabam sendo “mais uma providência a tomar”. Na mesma ocasião, classificou de “louco” o fato de “receber votos de feliz Natal e grandioso Ano...13 dez 2019
Humberto Werneck
Se nos outros meses do ano a gente não precisa de pretexto para brindar a alguma coisa, ou mesmo a coisa alguma, que dirá em dezembro, quadra do ano em que tudo nos incita, convoca e até obriga a um festivo encher & esvaziar de taças e de copos? Não terá sido diferente o panorama para os integrantes deste Portal da Crônica Brasileira, no qual, até onde a vista alcança, o destino não escalou um só abstêmio. Vários de nossos craques destilaram (ou fermentaram) crônicas sobre a bebida – e nenhum deles para condená-la.
Ao contrário. Rubem Braga dedicou toda uma coluna, “Cachaça”, a denunciar o que lhe pareceu “sinistro plano de subversão nacional”: um projeto do deputado paulista Paulo Abreu, no início dos anos 1950,...29 nov 2019
Humberto Werneck
Nascido em 1905, o cronista e romancista Jurandir Ferreira chegou ao fim da vida, quase um século depois, sem jamais vestir o figurino do velho ranzinza. Ao contrário, era conhecido também por sua bonomia. Mas nem por isso deu trégua a quem lhe parecesse ameaçar o sossego e as belezas naturais de sua cidade, a graciosa Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais.
Nos anos 1950, por exemplo, quando palavras como ecologia e ambientalismo ainda não tinham uso corrente, Jurandir Ferreira se insurgiu, em “Cabritos na horta”, contra o que qualificou como “furibundo projeto” – a construção de uma estrada rumo ao cume da Serra de São Domingos, que domina a paisagem de Poços. “Penso na inocência colossal e indefesa da montanha,...14 nov 2019
Humberto Werneck
Território natural da graça e da leveza, nem por isso a crônica está fechada a temas áridos, ásperos, quando não espinhentos, como a política. Não é frequente, mas acontece – e, quando se trata de cronista dos bons, o fruto pode ser até apetitoso.
Do nosso time, quem mais escreveu sobre política foi Otto Lara Resende, não tivesse sido ele o que mais se aplicou ao jornalismo. Repórter, fez com o general Lott, em novembro de 1955, uma entrevista que se tornaria famosa, horas depois de o entrevistado haver dado um “contragolpe preventivo” para garantir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Duas crônicas – “A restrição mental” e “O direito no sufoco” – deixam claro que Otto, naquele episódio, foi...31 out 2019
Humberto Werneck
Talvez não haja cronista brasileiro, de grande ou modesto quilate, que não tenha um dia escrito sobre a morte – tema, há quem ache, incompatível com a leveza do gênero. E nem todos que escreveram o fizeram por imposição do calendário, apenas porque fosse, como agora, tempo de Finados. Crônicas tocantes como “Vida” e “Enterro de anjo”, por exemplo, de Rachel de Queiroz, não dependeram de ser 2 de novembro para descerem ao papel e, em qualquer outra data, ao coração do leitor.
Alguns de nossos craques, como Paulo Mendes Campos, escreveram com frequência sobre o tema, e nem sempre com a circunspecção de que ele em geral se reveste. Se “Primeiro exercício para a morte”, “Encenação da morte” e “Tens em mim tua...14 out 2019
Humberto Werneck
Numa das notas que compõem a pequena crônica “O rapaz entrou no bar”, de 1951, Paulo Mendes Campos conta a história de duas vizinhas que, tendo saído no tapa, acabaram na delegacia. Ao saber que uma delas era professora, o delegado, lembrando-se de alguma que tivera, viu chegada a hora de livrar-se de mágoas escolares encravadas na alma havia mais de 30 anos – e não teve dúvida: mandou a criatura escrever 500 vezes, e com “caligrafia muita boa”, a frase “Não devo brigar com a minha vizinha!”.
Não é descabido imaginar que também o cronista, ao relatar aquele ato de vingança, tenha lavado um pouco a própria alma, não tivesse ele acumulado mágoas nos anos em que foi aluno do Colégio Dom Bosco, de Cachoeira do Campo,...30 set 2019
Humberto Werneck
A nostalgia não é mais o que ela era, escreveu o americano Peter De Vries no romance The tents of wickedness, de 1959, pondo em circulação uma pérola que a atriz francesa Simone Signoret, 20 anos depois, vai incrustar como título em seu livro de memórias.
Sobrecarregado de saudosismo, o achado resiste, com jeito de coisa sem dono, capaz de resumir o sentimento que se apossa de tantos de nós quando a memória regurgita lembranças da infância. E nem é preciso que se esteja, como agora, em clima de Dia da Criança, festejado a 12 de outubro.
Uns mais, outros menos, todos os nove autores de nosso Portal destilaram recordações de meninice em suas crônicas.
O mais antigo deles, Jurandir Ferreira, nos leva, em “A viagem”,...16 set 2019
Humberto Werneck
Já apelidado o Sabiá da Crônica (um achado de Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta), não seria excessivo, e muito menos descabido, chamar Rubem Braga também de O Fiscal da Primavera. Credenciais por certo não lhe faltam, espalhadas numa obra tão rica quanto vasta, iniciada aos 19 anos no Diário da Tarde, de Belo Horizonte, em 1932, e só encerrada com a morte, em dezembro de 1990.
Pense, por exemplo, na crônica “Manhã”, publicada em maio de 1952, e que, quase sete décadas depois, ainda não está em livro, como bem mereceria.
Não estranhe que um dos assuntos do cronista seja ali a primavera, quando maio, neste canto do mundo, é outono – ou deveria ser, mas sabemos como andam bagunçadas as fronteiras entre as... 2 set 2019
Humberto Werneck
Ninguém vai pedir a você que esqueça os outros craques deste Portal, claro que não – mas vamos, desta vez, estender um tapetinho vermelho exclusivo, só para Fernando Sabino, um dos maiores nomes da chamada fase de ouro da crônica brasileira, a partir de agora incorporado ao nosso time.
Com ele, mestre sobretudo na arte da prosa bem-humorada, chega um punhado de histórias deliciosas.
A começar por “O homem nu”, provavelmente a crônica mais conhecida de Sabino, não apenas lida e relida há mais de meio século, sem uma ruga sequer, como também levada ao cinema, com Paulo José no papel-título. E, já que temos um homem despido, cuidemos de providenciar para ele uma parceira, embora em situação oposta, “A mulher vestida”....15 ago 2019
Humberto Werneck
Uns mais, outros menos, não há cronista que não deixe vazar em prosa um tanto, ou muito, de seu baú familiar, presente ou passado. O que, aliás, está na natureza de um gênero cujos momentos mais felizes nos dão a impressão de estarmos sentados ao lado de alguém que parece falar a cada leitor em particular.
Basta ver, numa fartura de exemplos, a “Receita de domingo” que a sensibilidade de Paulo Mendes Campos com certeza copiou do imaginário caderno de seu convívio com a mulher e os filhos. Aonde mais teria ele ido catar, num começo de manhã, certa “dissonância festiva de instrumentos e percussão – caçarolas, panelas, frigideiras, cristais – anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e saboroso não...31 jul 2019
Humberto Werneck
Falar em obsessão seria um exagero, mas não dá para negar que Otto Lara Resende tinha algo de especial com o mês de agosto. Fosse o que fosse, o fato é que fez dele tema de um punhado de crônicas na Folha de S.Paulo – para não falar nos artigos que assinou no jornal O Globo, peças finas nas quais o mês em questão já está no título, como “Punhais de agosto”, ou “13 de agosto: tudo bem”. Quando, em 1992, lhe pedi algo para a revista Elle, o que foi que o Otto desovou? “Agosto, apenas uma rima para desgosto?”, delícia de crônica que, 27 anos depois, acaba de vazar da hemeroteca para enriquecer nosso Portal.
Para ficar apenas nos escritos de Otto reunidos no livro póstumo “Bom dia para nascer”,...15 jul 2019
Humberto Werneck
“Uma amizade”, escreveu Drummond, “pode ser considerada perfeita se resiste ao fato de ambos os amigos serem escritores do mesmo gênero – e bons.” A dele mesmo com João Cabral, outro imenso poeta, não resistiu; sem ruptura explícita entre o antigo mestre e o ex-discípulo, mas com enviesada e, não raro, divertida troca de farpas.
Drummond talvez tivesse razão ao dizer também que “de ordinário, o convívio das letras não cria amigos, mas cúmplices”. Na cena literária, de fato, atulhada de vaidades mendicantes – para incrustar esta pérola de Nelson Rodrigues –, não chegam a fazer maioria os escribas de bom quilate que sejam também nobres o bastante para reconhecer os méritos e acarinhar confrades de estatura comparável....28 jun 2019
Humberto Werneck
Já marmanjo, na casa dos 30, Paulo Mendes Campos caiu em cima de um tesouro que o acaso devolvera a suas mãos: seu diário de garoto, escrito em 1935, ao tempo em que, aluno da 2ª série do ginasial, ele vivia os rigores de um colégio interno – o temível Dom Bosco, dos padres salesianos, em Cachoeira do Campo, Minas Gerais. Era um pouco por castigo que ali estava, desde o ano anterior, por ter sido reprovado na 1ª série. Na áspera solidão do internato, lhe parecia estar – dirá ele na crônica “Quando voltei ao colégio” – o absurdo de expiar “crime futuro”.
O diário recuperado rendeu outra crônica, sem título, publicada em 1954 na coluna de PMC no Diário Carioca. Ao incluí-la em livro, bem mais tarde,...17 jun 2019
Humberto Werneck
Dos 77 anos que viveu, Rubem Braga passou uma boa terça parte, a derradeira, de frente para o mar, na legendária cobertura de Ipanema onde se encastelou em meados da década de 1960. Nem assim fartou-se ele da maravilha a que fora apresentado na infância, no inesquecível dia em que, num bando de meninos, deixou sua cidade, Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, para conhecer o mar.
“Era qualquer coisa de largo, de inesperado”, registrará nosso maior cronista, três décadas mais tarde, em “Visão do mar”. “Ficamos parados”, descreveu, “respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam.” Lembrança tão forte quanto fecunda: até a morte, em 1990, o Braga volta e meia ambientaria crônicas – “Duas...31 mai 2019
Humberto Werneck
“Onde andará agora aquele grandessíssimo...”, rosna a personagem feminina de “A moça e o Gaballum”, de Antônio Maria – e nem carece concluir a frase, pois o cronista intervém: “O homem ausente é chamado pela mesma palavra, desde que Adão saía, para buscar a maçã do regime de Eva.”
Pois bem, é esse o estado de espírito de uma criatura que, em “O pombo enigmático”, de Paulo Mendes Campos, aguarda o amado, com quem marcou encontro num beiral de igreja e que, já passada a hora, ainda não deu as caras, ou melhor, as asas. Finalmente chega ele, com um sorriso que desarma o pito à sua espera: numa “tarde tão bonita”, explica o pombinho à sua amada, “era um crime voar”, e por isso “vim andando”...
Nada...