Largo do Machado, Rio de Janeiro, década de 1950. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles
“Onde andará agora aquele grandessíssimo...”, rosna a personagem feminina de “A moça e o Gaballum”, de Antônio Maria – e nem carece concluir a frase, pois o cronista intervém: “O homem ausente é chamado pela mesma palavra, desde que Adão saía, para buscar a maçã do regime de Eva.”
Pois bem, é esse o estado de espírito de uma criatura que, em “O pombo enigmático”, de Paulo Mendes Campos, aguarda o amado, com quem marcou encontro num beiral de igreja e que, já passada a hora, ainda não deu as caras, ou melhor, as asas. Finalmente chega ele, com um sorriso que desarma o pito à sua espera: numa “tarde tão bonita”, explica o pombinho à sua amada, “era um crime voar”, e por isso “vim andando”...
Nada indica que fosse Dia dos Namorados, mas que importância tem o calendário para os apaixonados, para quem é 12 de junho nos 365 dias do ano? “O grande milagre que ainda acontece é o amor”, constata de novo Rubem Braga, numa crônica tão breve quanto certeira, “Amor, etc.”: “No meio da vida cheia de tanta encrenca, tanta coisa triste, e sofrimento e lutas mesquinhas, ele aparece de repente, não se sabe como.”
Mas assim como veio, sem aviso, sem aviso ele pode terminar, nos lembra Paulo Mendes Campos neste esplêndido poema em prosa que é “O amor acaba”. “Onde? Quando? Como?”, indaga ele na primeira linha, para lá no fecho se dar conta de que “em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer hora o amor acaba”.
Para Clarice Lispector, antes do amor, houve aos 13 anos um começo inesquecível: a revelação, conta ela em “A descoberta do mundo”, do “mistério da vida” – em sua inescapável crueza, os trâmites do amor carnal, a ela apresentados por uma amiga, na improvável paisagem de uma esquina do Recife. O baque, “misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida”, foi tão duro que a meninota, sentindo-se precipitada perto do coração selvagem da vida, jurou jamais casar-se.
Diluído o hematoma da revelação, Clarice terá aprendido também aquilo que Rachel de Queiroz ensinou a certa moça, que a ela recorreu para saber se era amor o que sentia. “Claro que não”, aclarou a escritora, tão mais vivida em seus 36 anos de então – e foi ao ponto: “Amor é jogo forte, só vale no tudo ou nada: amar é uma aventura heroica e insuperável”. Fora disso, delimitou Rachel em suas “Meditações sobre o amor”, “tudo é perfumaria, amor suposto, talvez querer bem ou gostar – amar, nunca.”
Há que honrar o amor, escreve o Braga, “o grande milagre verdadeiro da vida, o grande mistério e o grande consolo”. Mas que não se ame jamais à distância, pede ele numa crônica que se chama exatamente assim, “Distância”, escrita em Santiago do Chile, onde então vivia, num tempo em que a chama de um amor muitas vezes dependia de haver ou não uma carta sob a porta. “Mas uma carta leva dias para chegar” – “e, ainda que venha vibrando, cálida, cheia de sentimento [...], não diz o que a outra pessoa está sentindo, diz o que sentia na semana passada.” Exasperado, o cronista já não pede, implora: “Não ameis à distância, não ameis, não ameis!”
Mas em se tratando de amor – essa “insciência”, disse o poeta Affonso Avila –, seja ele passado, presente ou mesmo futuro, também a proximidade pode por vezes ser espinhosa, quando não dolorosa – e de algo assim nos fala Antônio Maria numa de suas crônicas mais belas e sutis, “O coração dos homens”, relato de seu encontro casual, no burburinho da rua, com alguém que um dia amou, e com quem se emaranha agora num diálogo feito mais de silêncio que de palavras. “Eu olhei a sua boca, porque era sempre em sua boca que as coisas aconteciam”, revisita Maria. Mas dizer o quê?, angustia-se ele, inerme no território esvaziado de um amor extinto – e, desajeitado, “sem querer” pergunta a ela como vai de saúde, para imediatamente naufragar na tristeza: “Como é melancólico”, descobre, “chegar-se à paz tão perfeita de se perguntar pela saúde da pessoa que se amou.”