coluna: Última Página
Publicada no livro 100 Crõnicas escolhidas, José Olympio, 1952, pp. 59-62.
"... e quero que a senhora, pelo amor de Deus, me responda se isto é amor ou não é. Gosto dele, mas me revolto com certas exigências, me irrito com certos defeitos, desejava que fosse diferente. E no final de contas, não posso dizer se amo ou se apenas quero bem".
(Trecho de carta de "uma fã")
Em primeiro lugar, moça, deveria dirigir-se à minha ilustre colega, dona Maria Teresa, não só em consideração à boa ordem da revista, como porque ficaria muito melhor aconselhada. Mas como pede pelo amor de Deus, vá lá a resposta pelo amor de Deus.
Aliás, para que me pergunta se ama? Claro que não ama. Amor é jogo forte, só vale no tudo ou nada: amar é uma aventura heroica e insuperável. “Give the world for love and consider it well lost”. Fora disso, tudo é perfumaria, amor suposto, talvez querer bem ou gostar − amar nunca. Saiba ainda que, ao contrário do que se pensa, amor é coisa rara. Não é a todos que se apresenta oportunidade de amar, nem se encontra capacidade de amar em todos a quem a oportunidade se apresenta. É mister que se reúnam capacidade e oportunidade, ocasião e pessoa. Quanto ao objeto do amor − isso é somenos. Todos sabem que é melhor amado aquele que menos o merece, ou aquele que nem sequer tem consciência do amor alheio por si. Porque jamais os olhos ou a inteligência ajudam o coração amante, ou, se o ajudam, fazem-no de um modo passivo: apagando-se, anulando-se, deixando de enxergar e de discernir, fugindo ao exercício do seu ofício natural que é prevenir o dono contra surpresas e maus passos.
E pois, se você ainda tem olhos para enxergar feiúras no seu suposto amado, se tem cabeça para lhe descobrir defeitos, é porque não ama. Se ele não lhe parece belo, irresistível, único, é porque não ama. Se por amor dele não está disposta a perder tudo, nome, fama, amor próprio, corpo, sangue, alma e divindade, então não ama. Se não se sentir capaz de repetir a frase daquela mulher que reza assim: "Minha Nossa Senhora, fazei com que ele não me bata, porque se ele bater sei que eu aguento!" − se não é capaz de rezar essa reza, para que ilude a si e aos outros falando que ama?
Se qualquer outro homem do mundo, seja embora um artista de cinema, (seja embora Gregory Peck ou até o António Vilar), se qualquer homem lhe parecer mais bonito e mais interessante do que ele, então não o ama.
Jamais se cansar da presença dele, mesmo quando ele é chato; jamais lhe enjoar a voz, as anedotas repetidas, os gestos, os cacoetes; jamais ficar farta dos seus carinhos; jamais, oh, jamais, recordar nada nem ninguém, nem rememorar o passado ou evocar o futuro, se acaso ele não for personagem desse passado ou candidato a esse futuro − isso é que é amor. Achar explicações e desculpas para todas as suas debilidades e fraquezas: se bebe é porque considera este mundo mesquinho demais e na bebida se evade da prisão terrena; se é pequeno − não são os pequenos frascos que encerram as grandes essências? se é enfermo, ou fraco, ou débil, é que a grandeza da alma foi excessiva para o carnal invólucro; se é magro, é porque a chama do espírito consome nele a vil matéria; se é gordo, será porque não sofre inquietações nem remorsos, e é natural que se desdobre em repouso a carne sem pecado. Se é inteligente, perdoem-se-lhe as maldades por amor do talento; se é burro, leve-se em conta a bondade, que um grande coração supre todas as falhas da inteligência. E se, em último caso, é burro e mau − ai, decerto o pobrezinho ficou assim porque muito penou neste mundo, aprendeu a defender-se, a ficar amargo e a inteligência se lhe embotou nessa luta. E mais carecido deve estar de quem, à força de carinho, faça renascer uma centelha de luz mental e um calor de bondade naquela alma em trevas.
E há ainda o recurso inesgotável dos complexos de infância, há toda a vasta desculpa proporcionada pela psicanálise. Antigamente, diante de um impossível psicológico ou sentimental, a gente "botava para Deus" e continuava amando. Hoje ainda é mais fácil − bota-se para Freud.
As malvadezas, as crueldades, as mesquinharias, as infidelidades, tudo se explica por complexos apanhados na infância. Foi a mãe que o não tratou bem, ou o tratou bem demais; foi o pai que se fez rival do filho e o oprimiu ou ignorou.
Enfim, moça, se não quer passar fome ao seu lado, se não achar bonito não ter o que comer, então não ama, e pronto.
Em matéria de amor, senhorita, de amor de verdade, só existe Amélia e nada mais.