Clarice Lispector, 1976. Foto de Madalena Schwartz/ Acervo Instituto Moreira Salles
Numa crônica prestes a se tornar septuagenária, mas ainda fresca e sem rugas, Rubem Braga fala do dia em que um poeta, dos maiores que tivemos, lhe contou de seu encontro casual, já fazia tempo, com uma bela moça, Maria. Cruzaram-se numa calçada, ele saindo de um bar, melancólico, ela radiante, de braço dado com o noivo – e desse breve encontro lhe ficou alumbramento inapagável: cravados nos seus, uns belos olhos cor de piscina.
Numa conversa com Maria, o cronista relatou o que ouvira do poeta, mas a jovem não se lembrava do encontro. Foi a vez de Rubem mergulhar, fascinado, na piscina do olhar da amiga. Só bem mais tarde, quase trinta anos depois, ao revisitar em seus arquivos aquela crônica de 1952, intitulada “Poeta”, o Braga revelaria a identidade dos protagonistas da história – e o fez para si mesmo apenas, anotando à mão no recorte de jornal: “Na ocasião eu não quis dizer o nome dos personagens. Hoje ambos estão mortos. O poeta era Manuel Bandeira, a moça nova chamava-se Clarice Lispector.”
(Parêntese para lembrar a você, se preciso fosse, do bom que é encontrar neste Portal, além de velhos recortes, as enriquecedoras anotações e correções neles eventualmente feitas, de próprio punho, por nossos cronistas.)
Voltemos a Clarice, cujo centenário de nascimento transcorre neste ano de 2020, mais exatamente em 10 de dezembro. Sensível à beleza não apenas física, Bandeira, naquele encontro de rua, sabia bem do talento da moça que mal estreara nas letras.
Um pouco por seu feitio esquivo, um tanto por ter vivido tantos anos fora do Brasil, casada que foi com diplomata, o fato é que Clarice, entre leitores e mesmo críticos, custou a “pegar”. “Ao contrário do que se pensa, ou do que pensam os desavisados, a carreira de Clarice Lispector não foi uma sucessão de facilidades e vitórias”, escreverá Otto Lara Resende em “Começo de uma fortuna”, de 1991. Hoje na estante dos clássicos, seu primeiro livro, Perto do coração selvagem, lembrou o cronista mineiro, “andou de porta em porta, em busca de editor, e acabou saindo numa edição modesta, com pequena tiragem”.
Otto voltou à amiga numa crônica de 1992, cujo título, “Claricevidência”, por ele cunhado, exprime condição indispensável – “um alto grau de sintonia” – para aceitar e amar essa artista singular. “O segredo de seu texto está numa nota pessoal que tem de bater com a emoção do leitor”, disse o cronista. “Coincidir, respirar junto no que pode ser uma claricevidência.”
Também Paulo Mendes Campos, outro amigo muito chegado de Clarice, por longo tempo sentiu ser necessário “apresentar” ao leitor uma autora que, no entanto, tinha já um punhado de livros publicados. Em 1954, na crônica “Uma noite, uma família...”, Paulo julgou-se na obrigação de escrever pouco mais que um verbete biográfico de Clarice, de quem “relativamente pouco” se conhecia, na tentativa de iluminar a romancista de Perto do coração selvagem, O lustre e A cidade sitiada, de quem saíra, também, na série Cadernos de Cultura, do Ministério da Educação (saudosos tempos!), uma pequena porém estupenda seleta de contos.
Em outro tom, agora divertido, Clarice Lispector vai comparecer em “Minhas empregadas”, crônica na qual Paulo Mendes Campos enumera desastres, ou quase, que presenciou sob seu próprio teto. Bem-humorado, ele escancara a inveja que lhe dava a sua amiga nesse departamento doméstico. “A meu ver, em língua portuguesa, ninguém exprimiu mais concretamente do que a romancista Clarice Lispector certas finuras de reações psicológicas”, começa ele – e vai ao ponto: “Pois muitas de suas empregadas, a falar frequentemente coisas que lembram as personagens, imitam-lhe a arte”. São deliciosas, de fato, contadas por Paulo, as histórias das auxiliares que Clarice teve em casa, tão pouco convencionais, pode-se concluir, quanto a patroa.
Leia-se, por fim, e não somente neste centenário, “Mãe, filha, amiga”, a breve crônica que Otto Lara Resende escreveu, em carne viva, tão logo soube da morte de Clarice Lispector – desfecho que, aliás, pressentira ao acordar naquele 9 de dezembro de 1977. “Destroçado”, ele pôs, no curto espaço de uma lauda, ilustrações de uma camaradagem resistente o bastante para sobreviver a não raros rompantes verbais de sua amiga. “Era um exemplo brutal da singularidade humana”, sintetizou o cronista. “Clarice era Clarice. Nunca, em tempo algum, haverá outra, haverá duas Clarices.”
Quem duvidaria?