O riso sem remorso

Bico, São Paulo, 1963. Foto de Otto Stupakoff/ Acervo Instituto Moreira Salles

Talvez não haja cronista brasileiro, de grande ou modesto quilate, que não tenha um dia escrito sobre a morte – tema, há quem ache, incompatível com a leveza do gênero. E nem todos que escreveram o fizeram por imposição do calendário, apenas porque fosse, como agora, tempo de Finados. Crônicas tocantes como “Vida” e “Enterro de anjo”, por exemplo, de Rachel de Queiroz, não dependeram de ser 2 de novembro para descerem ao papel e, em qualquer outra data, ao coração do leitor.

Alguns de nossos craques, como Paulo Mendes Campos, escreveram com frequência sobre o tema, e nem sempre com a circunspecção de que ele em geral se reveste. Se “Primeiro exercício para a morte”, “Encenação da morte” e “Tens em mim tua vitória” nos falam em tom grave, outras crônicas de PMC, sem um grão de desrespeito, são francamente bem-humoradas. É o caso de “Diálogo no Caju” (que em livro irá chamar-se “Diálogo à beira da cova”), em que uma senhora ainda jovem escolhe sua sepultura com o rigor de quem escolhe apartamento. E também de “A morte de um homem grande”, em que um doente, varapau com 1,90m de altura, vai conferir nas escadas do prédio, com a ajuda do porteiro, se há espaço para a descida de seu futuro caixão.

Bem-humorado é também outro mineiro, Jurandir Ferreira, que, possuído às vezes por “entusiástica vocação para morrer”, vê seu “apetite morredor” se esvair ante o falatório nos velórios a que comparece, aos quais não faltará nem mesmo um “Negócio de vaca com defunto” em que dois sujeitos, por sobre o corpo do falecido, acertam compra e venda de uma rês.

Clarice Lispector, em “Morte de uma baleia”, não esconde o horror que lhe inspira o fecho de uma vida, mesmo que seja a de um cetáceo que, extraviado, se acabava nas areias do Leme, no Rio de Janeiro, a pequena distância de onde vivia a escritora. “Morte, eu te odeio”, crava ela. Em “As três experiências”, Clarice antevê seu próprio fim, que lhe dá medo, e para o qual compõe enredo: “Quero morrer dando ênfase à vida e à morte”.

Antônio Maria, em “Considerações sobre a morte”, fala a todos nós, “passageiros para a morte e escalas”, com a costumeira graça, e revela aquilo que mais o punge quando alguém se vai: a perda, não exatamente da pessoa, mas dos “dons e as competências que se levam para o túmulo” – e detalha: “São as habilidades intransmissíveis”, no caso, por exemplo, do “pianista que morre e não deixa para o filho o poder dos seus dedos sobre o teclado.”

Incomodado com a quantidade de gente que está morrendo, Rubem Braga, revela o temor de acabar “falando sozinho” neste mundo. Nem por isso acha bom quando os finados voltam para visitá-lo. “O pior dos mortos é que nunca telefonam”, reclama ele em “Desculpem tocar no assunto”: “Aparecem sem avisar, sentam-se numa poltrona e começam a falar”. Não é só: “Tocam em assuntos que já deviam estar esquecidos, e fazem perguntas demais”.

A exemplo da amiga Clarice, o Braga tem planos para quando chegar a sua vez. Gostaria, escreve ele em “O morto”, que o seu velório “fosse assim como uma festinha de despedida, onde mesmo as pessoas que ficassem com os olhos vermelhos pudessem rir sem remorsos”. Remorso que ele está longe de sentir ao contemplar, na praia, um belo corpo feminino, e mais que isso, assumir aos pouco o desejo que lhe infunde aquela mulher cujo marido, seu conhecido de vista, morreu recentemente. “Eu estou vivo, e isso me dá uma grande superioridade sobre ele”, rejubila-se o cronista na sutilíssima “Viúva na praia”.

Em “Morrer de mentirinha”, Otto Lara Resende fala de um acontecimento que viera copiar na vida real um velho conto seu, sobre alguém que lê na imprensa a notícia de sua própria morte. No dia seguinte, em “A morte e a morte do poeta”, o cronista retoma a história, e a partir dela chega a um episódio macabro e divertido das letras brasileiras, no qual o poeta Gonçalves Dias escreve a um jornal para desmentir a notícia de seu falecimento num naufrágio.

No mesmo ano de 1992, Otto volta no tempo e se vê, menino, na tentativa de driblar a “obsessiva presença” da morte, a qual, desconfiava, “virá como um ladrão, quando menos se espera”. “Olá, iniludível”, título bebido na boa fonte de Manuel Bandeira, saiu na Folha de S.Paulo no Dia de Finados, também em 1992, menos de dois meses antes que a morte, praticamente sem aviso prévio, levasse o grande escritor mineiro.