24 ago 1963

Encenação da morte

Periódico
Manchete, nº 592
Publicada também em: livro O colunista do morro, de 1965.

Já ganhei da morte várias vezes, já matei em mim mortes de todos os tamanhos e feitios. Se não me explicar direito, ninguém vai me entender. Se daqui a um minuto posso estar vivo ou morto, daqui a um minuto, qualquer que seja a minha condição aparente, serei o ringue de uma briga entre a vida e a morte. A todo momento, sou apenas um ângulo, reto, agudo ou obtuso, entre a vida e a morte. 

A vida nos quer, a morte nos quer. Somos o resultado da tensão ocasionada pelas duas forças que nos puxam. Esse equilíbrio, antes de tudo, não é estável. Amplo, diverso e elástico é o campo de forças da vida, assim como elástico, diverso e amplo é o campo de forças da morte. Ficamos facilmente deprimidos ou exaltados em razão das oscilações de intensidade desses dois campos magnéticos, sendo o tédio o relativo equilíbrio entre os dois. Às vezes é mais intensa a pressão da vida; outras vezes é mais intensa a pressão da morte. Não se diz com isso que a exaltação seja a morte e a depressão seja a vida. De modo algum. Há exaltações e exultações que se polarizam na morte, assim como há sistemas de depressão que gravitam em torno da vida. O estranho, do ponto de vista biológico, é que somos medularmente solidários com ambos os estados de imantação mais intensa, os da vida e os da morte. Dizendo mais claro: não aproveitamos apenas a vida, mas usufruímos também as experiências da morte, desde que estas não nos matem. Tudo dependerá da resistência, não da nossa vontade, do nosso mistério: se o mergulhador descer um pouco mais, a desigualdade de pressões lhe será fatal; se o centro de gravidade da torre de Pisa se deslocar mais um pouco, ela ruirá; enquanto não ruir, a torre usufruirá de sua perigosa inclinação, do mesmo modo que os mergulhadores vivem um estado de euforia nos estágios submarinos que precedem a profundidade mortal.

Mas a morte pode sobrevir, não só de doenças, mas também de acidentes, de uma organização das circunstâncias que se chama acaso. Pois acho eu que a morte, por doença ou acidente, é sempre a mesma; quando ela se apodera de nós, seja por uma queda de pressão, seja por uma queda de elevador, é que se rompeu o equilíbrio: o centro de gravidade de um sistema se deslocou o mínimo necessário; o mergulhador foi longe demais na sua ousadia pesada, mas eufórica.

A morte quer apossar-se de nós a todo instante, ela mesma é a coisa instante. Para isso, ela se reveste de todos os disfarces, representando ocasionalmente em nós papéis que se repetem por longas temporadas. Outras vezes, sua atuação é eletronicamente rápida e múltipla como um teatro de variedades: entre duas batidas do coração, a morte entra lá dentro, lá dentro de toda a tessitura humana, representa uma peça completa e se retira de cena, para voltar no intervalo de mais duas pancadas, com uma novidade, novo guarda-roupa, nova encenação, novo argumento. A esse alucinante virtuosismo teatral da morte, devemos a perplexidade do conhecimento. Em um único instante, simultaneamente, podemos ter a impressão de que agarramos afinal a realidade do mundo e de que ela fugiu de nós para todo o sempre. E o que chamamos vida também aproveitou o intervalo entre as duas pancadas cardíacas para representar dentro de nós uma peça simultânea e diferente. 

Ganhei várias vezes da morte, isto é, inúmeras vezes, os papéis que a morte representou para mim não chegaram a ser convincentes, não fizeram grande sucesso. Matei várias mortes. Muitas dessas mortes eram diáfanas como as asas da mais tênue borboleta: não existem palavras para relatar esses duelos microscópicos, instantâneos, sutis. Que se passa no coração entre duas pancadas?

Há no entanto mortes grosseiras que entram em nós, mortes rudes, que empolgam a representação infinita das mortes delicadas; dessas mortes populares, sim, nós temos medidas humanas para falar.

As mortes que perseguem a infância são em geral grossas, estúpidas. No meu tempo, anterior aos antibióticos, elas, disfarçadas em infecções purulentas, arrastavam uma criança por longos meses de sofrimento. Quando não venciam, extenuavam de tal forma a criança, que a pobrezinha se predispunha a preferir a morte à luta pela vida. 

Mas nem sempre as mortes que acometem uma criança são desse gênero brutal e infeccioso. Eu, por exemplo, conheci quando menino a presença da morte por afogamento, deleitando-me cariciosamente na intimidade das águas. A sensualidade da natureza, aliás, é uma das mais comuns representações da morte durante a infância.

Aos dez ou onze anos assisti também a vivas representações da morte por santidade. A morte se disfarçou na sedução que me provocavam um Guy de Fongalant ou um Domingos Savio. Meus pais nunca se deram conta de que estive a pique de ir para o céu quando me fiz santo, melhor, quando a morte representou para minha alma nova, mas torva e dissentida, o auto da santidade.

Na adolescência, a morte pode advir do próprio sentido da palavra, pois adolescere em latim é crescer – e sabemos que o simples crescimento da criatura humana é uma tensão excessiva, que pode ser mortal.

Entre doze e treze anos busquei sempre a morte acrobática, aonde me chamavam os espetáculos de circo e as aventuras de Tarzan. Essa morte era tão atraente que até hoje não me libertei da puerilidade de ter sido um maravilhoso ginasta de árvores, pedreiras e casas em construção.

Se até os dezoito anos conservei o prazer da morte esportiva, por excesso de velocidade ou de altitude, um ano depois o grande teatro da morte renovaria em mim seu elenco. Vivi então, até as nervuras da coisa, a lenta paixão da folha morta, rolando aqui, ali, imagem muito antiga do romantismo. Resmunguei os versos de Verlaine ao vento mau que me levava pelas madrugadas imprevisíveis. Conservo ainda o sabor dessa morte por sujeição à literatura, na qual um outono de todo alegórico fazia o papel principal em um coração estraçalhado pela própria primavera.

A pantomima que se seguiu tem o título de morte por solidão, quando reproduzi em contorções íntimas a parábola do homem só. Conheci ainda pela mesma época a  morte por assassinato, que não chegou a fuzilar-me; a morte por tuberculose, que nem cheguei a ter; a morte por desregramento nervoso, que não chegou a enlouquecer-me; a morte por heroísmo, que não chegou para perto; a morte pelo tango, que não chegou a danar-me; a morte por absurdo, que não chegou a provar-me; a morte por amor, que não cheguei a morrer; a morte pela humanidade, que não chegou a crucificar-me. Quanto à morte por suicídio, no sentido usual do termo, nunca se dignou a seduzir-me de frente: vislumbrei mal e mal um lago de parque, a vertigem de um topo, a tranquilidade da alma do veneno dentro do frasco.

Por fim, outro dia, dei dentro de mim com uma morte tão madura, tão forte, tão de homem, tão irrespondível, tão parecida comigo, que fiquei no mais confuso dos sentimentos. Esta eu não posso matar, pensei, esta é a minha morte. Encontrando o Vinicius de Morais daí a pouco, contei-lhe o ocorrido. Mas o Vinicius, destacada autoridade em morte no país, depois de questionar-me sobre os pormenores, disse que nesse terreno há sempre margem de erros, e que talvez eu tenha de andar um bocado mais para encontrar a minha morte. Pode ser. Quem sabe?

paulo-mendes-campos
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