Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.
Uma vez escrevi a história de um sujeito que de manhã lê no jornal a notícia de sua própria morte. Dei-lhe o título de “O morto insepulto”, que hoje me parece duplamente fúnebre. Moço, fugi da linha do humor. Optei pela sobrecarga sombria, o que me diz que há na mocidade às vezes mais sombra do que luz. Não caio na tentação de ler hoje essa história que escrevi ontem.
Era uma época em que o Kafka, mais do que na moda, estava no ar. Pois também eu entrei pelo caminho kafkiano, com os competentes toques de absurdo. Num clima opressivo, o morto-vivo debatera contra uma burocracia indiferente ao seu drama. Não terá sido a primeira nem será a última vez que se terá escrito ou se escreverá uma história a partir de um morto que está vivo, ou de um vivo que passa por morto.
Aliás, a própria realidade está aí inventando esse tipo de quiproquó. Ainda agora o Jornal do Brasil noticiou a morte do pianista Marcos Resende, que está bem vivo nos seus 42 anos. O jornal se incumbiu no dia seguinte de glosar a história. Confundido com um xará, o falecido contou as agruras por que passou. Com a reconfortante certeza de que está vivo, não lhe foi difícil achar graça no engano.
Nunca a falta de fundamento de uma notícia há de lhe ter parecido tão simpática. Na gíria de jornal, foi uma barriga. Então, viva a barriga!
Nascido em Cachoeiro do Itapemirim, ES, como Rubem Braga, Marcos Resende acaba de lançar um disco instrumental de 11 canções de Roberto Carlos, que também é cachoeirense. Está lá Mexerico da Candinha, que significa boato, diz-que-diz. Os filhos da Candinha, maledicentes, só passam adiante notícia mentirosa. Lá está também Jesus Cristo, cuja letra repete aquele refrão: “Jesus Cristo, eu estou aqui”. Nada mais oportuno para o pianista Resende. Grite agora com Roberto Carlos, depois de ter saltado por cima da breguice do grande cantor.
A partir da falsa morte simulada pelo próprio morto, Pirandello escreveu O falecido Matias Pascal. O defunto queria era mudar de vida. Deixar pra trás “il fu Mattia” e reinaugurar um novo homem, uma vida nova. Ser outro para ser feliz. Li este livro há muitos anos e hoje suspeito que o entendo melhor. Há momentos em que a gente se cansa de ser quem é. E vem essa vontade pirandelliana de ser outro. Partir para a aventura e realizar a fantasia com que um dia sonhamos.