Que foi que houve? Houve um instante dentro da madeira noturna, uma canção a tremular na onda, uma boca articulando pedras, um quintal com umas galinhas doentes, uma maçã dentro do sapato, um tiro de fuzil na tarde calcinada, uma guerra com estampas cheias de sangue, um grito intermitente no meu corpo, Deus de branco, Deus de vermelho, Deus despido sobre o ladrilho. Houve um pensamento no alto, carregado por uma nuvem crua. Pobres, milhões de pobres, mãos desgalhadas, pernas feridas, caras de estopa e fuligem. Me lembro de contrações musculares, de náusea-piedade, de ódio-esquecimento, em salas algodoadas com mulheres, com triângulos louros, ruivos, morenos, e um perfume que fazia quase esquecer o aroma dos lírios enfumaçados. Houve um retrato tirado na província ao lado de um poeta em pedaços. Um ladrar de cão na madrugada. Do mundo me lembro, era um mundo escuro e rápido com um túnel com uma dor qualquer. E a gente ria e ria e ria. Os pinheiros alongavam-se na serra, os sapos engordavam no perau. Houve um remédio escorrendo no pijama, grosso, minha mãe, ah, minha mãe, de onde vim. Houve um discurso furioso prometendo a morte e um discurso delicioso prometendo comida e amor. E não deram nada. Fiquei anos e anos no fundo de um bar, olhando esmagadoramente um copo vazio. Façamos um pouco de ordem: antes de tudo, houve uma coisa qualquer que eu não via, que não havia. Podia ser o avesso. O avesso da árvore, o avesso da luz, o avesso da palavra depois. Consegui ler um livro até o fim, o homem calvo voava sobre o parque, as vacas faziam desencanto, porque o tempo acaba demais como um fruto que se come quase podre. Houve de repente uma senhora branca dentro da banheira e o horror da hora, a hora-horror, parada dentro do relógio, um coágulo dentro da taça, um rato dentro da cama. Houve um tapete tão profundo e tão difícil que, envergonhado, me enrolei, me escondi. Houve um conselho, que me deram, tão certo, tão certo, que me esqueci. Houve uma fanfarra ainda, seguida, ingenuamente por um cão idiota, caçador só de música, e depois, minha mãe, os remédios escorrendo com uma doçura intolerável pelo meu corpo. E foi então que vi a violência. Não me lembro o que era a violência, mas dela nasciam crianças, noites em claro, espinhos, mentiras, pasmos, dicionários, sentenças. Ah, se me lembro, no princípio houve também só a milícia dos arcanjos de pedra-sabão. De pedra-sabão era no espaço o jorro do órgão do coro, meu primeiro exercício para o túmulo, meu cão, digo, meu cão-em-mim, o cão de estar aqui, ou lá, onde estive, ou não estive, onde flui, ou não flui, onde fui, ou não fui. Tenho quase a certeza, balsâmica (ah, minhas palavras, tão bonitas) de que fui um cão, um cão que farejava uns restos de música de fanfarra, por onde os homens tinham passado. Os homens não eram cães: eram importantes, e cheiravam a água de lavanda quando se vem dum enterro ou dum banquete, com a respiração audível e um bafo cansado de satisfação e mais um lenço branco que se passa na testa suada e se suspira. E se suspira. Houve um ruído de prego que se bate com ressentimento, um moço descarnado tombando de bêbado entre carneiros, uma campainha de telefone (ah, houve telefone) soando com terror na noite, no cerne da noite, o âmago da noite, o coração paralítico da noite, a noite da noite, o point of no return (ah, houve inglês) da noite. E depois não amanheceu, minto, amanheceu uma vez no lobby encerado com um saxofone mudo. Apesar dos pesares, com a morte na alma, fui um cão. Cheguei a ser um cão. Latia. Quando a minha alma passava da morte que existe agora à morte que vai existir daqui a pouco, da morte que existe daqui a pouco à morte que existe mais adiante, ad infinitum. Latia. Cultivei termos simpáticos, fui uma vez ou outra ao teatro, fumei um cigarro entre dois atos, beijei a mão de uma senhora, colaborei na construção de uma ponte, jantei num restaurante com vinho, publicaram meu retrato na revista do serviço público com um objetivo, comprei a crédito, chegaram a rir quando falei uma coisa engraçada (para um cão, bem entendido). Latia. Uivava, gania, latia. Nada puderam fazer por mim, fiquei amando nos terrenos baldios, fuçando latas de lixo, farejando restos de música. O presidente da República me fazia latir. Latia à toa. Uma vez, lati quando uma grande dama me disse que eu possuía uma voz cheia de speaker. Uma tarde, quando um corretor de seguros me falava com impressionante entusiasmo sobre a civilização ocidental, lati até chorar. Houve um momento no aeroporto gelado, quando vi agora o meu primeiro exercício para a morte, ou para a vida, sim, houve. Houve a vida, quase tenho a certeza desconfiada, mas não balsâmica, de que houve a vida, a vida de um cão, mais que as imagens quebradas de inverno, primavera, verão e outono, mais que Pai, Filho e Espírito Santo, semente, haste, galhos, folhas, flores e frutos.

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