Tenho olhos para não estar cego quando chegar, tenho mãos para pressenti-la no ar, quando chegar, quando de tudo que vivi chegar, todos os sonos e insônias, de minhas devassidões, anseios, aborrecimentos, quando a grande e pequenina morte que carrego comigo chegar.

Não sou ninguém, e nem devia dizer que não amo a minha morte. Mas foge de mim um bando de palavras incontidas. Posso contemplar um rosto e não chorar, posso ver um dia nascer e morrer, e sorrir. Mas eu fui feito para morrer. Morrerei tudo.

A cidade não adivinha o eco de meus pés dentro de um muro. Meu amigo não sabe o que pensei quando me disse: 

– Você se lembra dela?

– Qual?

– Aquela?

Nem mesmo sei eu o que penso, nem mesmo sei o que adivinho, quando sigo sem mim praticando os gestos da vida. (Posso amar muito o que os outros são, mas nunca posso dedicar-me a tudo que sou.)

Veio ter comigo muitas vezes. Desceu ao ombro do menino. Veio de mãos dadas com o perfume das acácias, quando um piano insinuava uma coisa qualquer, e eu já não farejava na cidade minhas costumeiras mágoas. Veio com a beleza e a melancolia, bateu às minhas costas nas praias, nos píncaros, nas barbearias, nas salas de aula, ou quando olhava, frágil de carinho, um cesto de peixes do mar. Tocou os tambores das paradas militares, foi o vento que vi esvoaçar o véu da noiva, agitou as bandeiras cívicas, inaugurou a estátua, inventou-me a ternura, a bondade, a minha fome.

Eu sou tudo ela. Se a esqueço, não me esquece. E dorme em mim. E sonha em mim os piores sonhos deste mundo. Nunca pude dizer tudo o que eu quero porque ela não quer. Meu verso se fez trôpego e medido por causa dela. Meu riso se fez tímido. Meus passos foram passos tortos de bêbedo, minha sabedoria foi uma sequência de trevas, minhas afeições não valeram, meus amores ficaram inconclusos, minhas alegrias foram alegrias loucas de louco.

Vai comigo a morte; vou comigo à morte.

Quando olho o mar eu me canso; se leio poesia me aborreço; quando durmo não descanso; se me embriago me entristeço.

Exatamente do tamanho do meu corpo. Dei por mim, e meus dedos estavam cruzados. Havia um zumbido de moscas quando me deitei, e os círios pálidos nos meus pés mais pálidos.

Quando cheguei à boate, ela me disse: “Boa noite”. Quando saí: “Vou dormir contigo.” E eu lhe fizera caretas lúgubres quando a vi dentro do espelho.

Mísero e covarde, cheguei a amá-la, viva, inquieta, desatinada, cheguei a procurá-la nos cemitérios, nos teatros, nos campos de futebol, e marquei a tinta vermelha nos livros o seu nome.

Nunca mais.

Morte, tens em mim tua vitória.

paulo-mendes-campos
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