Considerações sobre a morte

 

Fonte: Pernoite, Martins Fontes, 1989, pp. 31-33. Publicada, originalmente, na Manchete, de 15/08/1953.

A humanidade embarca, em levas, para a vida, à medida que o alto-falante anuncia: "passageiros para a morte e escalas"... As alegrias e os sofrimentos, o amor, a Loteria Federal, a traição, a falência, o título protestado, o soco na cara, a impotência, a ascensão do dólar, a carta anônima, essas coisas tantas e bilhões de outras são escalas obrigatórias ou fortuitas, curtas ou duradouras postas no caminho da morte. Embora esteja farto de saber disso, o homem, dotado de artificiosas ideias, vem lutando, há milênios, para inventar coisas de matar e de sobreviver. Para matar, inventou:· a ajuda ao parto, a faca, o revólver, a espingarda, a metralhadora, o canhão, as bombas (algumas de São João), o formicida, o permanganato, o arsênico, a empada, os aviões, os navios, os trens, os automóveis, as motocicletas, os vigésimos andares, o gás, o banho de mar, o chumbo derretido (no ouvido, em colherinhas), as doses mais altas de alonal e heroína. Para viver, foram inventadas roupas, injeções, xaropes, operações cirúrgicas e bancárias, fricções, transfusões de sangue e, recentemente, os antibióticos que, até ao tempo em que sua falsificação não seja abusiva, até quando certos micróbios não se puserem em condições de vitória contra a ação da penicilina e das estrepto, áureo e terra (micina) – os antibióticos, dizíamos, nos livrarão de certas mortes antigas, como septicemia, pneumonia etc. Como vemos, as invenções para matar são muito mais numerosas e quase sempre mais eficazes (no sentido de ação rápida) que as invenções para viver. Todo esse esforço inventivo, porém, resulta em inutilidade, porque o homem vai morrer de qualquer jeito.

O suicídio, tão frequentado pelos que se sentiram fracassados ou por aqueles que se fatigaram mais depressa, é uma forma enganadora de fuga. O que se mata foi levado ao extermínio de si mesmo quando sentiu que "se" podia ver-se livre daquela dor, daquele ajuste de contas ou daquela canseira. Mas, antes de cortar os pulsos ou atirar-se ao mar, é necessário que o suicida se pergunte: serei livre onde? A que horas? Com que sensibilidade para acolher o meu alívio? Se a fuga é a busca do refúgio, não haverá instante, nem haverá pouso, para se gozar o ludíbrio da pena, depois que a vida parar. Se fizesse este fácil raciocínio, só assassinaria a si mesmo aquele que se conformasse com a mera insensibilidade da morte, em troca de todos os seus medos, apreensões e dores.

A lamentação da perda de um amigo ou de um parente de sangue é a simples lamentação da presença, da falta, em todos os sentidos, material, que o morto começou a fazer aos que ficaram. Tanto isto é uma indiscutível verdade, que o tempo vai desabituando-nos a viver sem os nossos mortos mais queridos, substituindo-os por vivos que, ao nosso afeto, assumem grande importância, causando mesmo a nova impressão de que, se não existissem precisariam ser inventados e, se morressem, seria impossível resistir à sua perda. Cada um se lembre do que chorou, do que sentiu − digamos, há dez anos – quando perdeu o pai ou uma irmã. Em seguida, ausculte-se, examine-se, agora, e não encontrará no coração um pingo de lágrima para essa dor antiga. Seremos ruins? Haverá uma índole má comum a todos os homens? Não. A dor moral, por mais intensa e constrangedora que seja, não resiste ao tempo e às compensações que surgem no decorrer de uma vida.

Dissemos que o que se lamenta na morte do outro é a perda de sua presença. No entanto, o que devia ser mais deplorável, o que mais apropriadamente devia ser considerado perda são os dons e as competências que se levam para o túmulo. São as habilidades intransmissíveis, como por exemplo: o pianista que morre e não deixa para o filho o poder dos seus dedos sobre o teclado. O cantor que sai da vida, sem legar a voz a um irmão ou a um amigo (só houve uma exceção, nesse caso de bens intransferíveis, foi o caso de Francisco Alves que deixou a voz para João Dias. E, além da voz, o mau gosto na escolha do repertório). No entanto, estas são as coisas que deviam ser mais pranteadas: o poder, a arte, a magia, o atletismo, que cada um leva para o túmulo.

Há momentos em que a morte eventual é fascinante. Examine-se bem, cada um, antes de entrar no avião e faça de si para si esta pergunta: que tal se o avião caísse? Há uns poucos dias, no aeroporto de São Paulo, ao nosso lado, alguém lembrou essa possibilidade. E o cansaço do que tínhamos feito era tanto, restava uma coragem tão pouca para o que ainda tinham que fazer, que o desastre no ar me seduziu e, naquele curto momento, descobri que a morte ocasional era a única forma exata de repouso. Se, na vida, apesar da imensa batalha sustentada contra o ócio, nossa coragem tinha sido sempre para muito pouco, naquele instante, não mais que naquele instante, não havia coragem para nada.

antonio-maria