26 set 1959

A morte de um homem grande

Periódico
Manchete, nº 388

Publicada no livro O cego de Ipanema, de 1960.

Osório Guedes foi um desses magníficos boêmios de trinta anos atrás, da equipe noturna do Sinhô, Zeca Patrocínio, Pequenino... Foi um seu companheiro que me contou essa história meiga e dramática.

Guedes escrevia para jornais e revistas de teatro, ganhou uns dinheirinhos, inverteu esse capital em francesas, viveu algum tempo de orvalho e brisa matutina, acabando por herdar cento e poucos contos, e aí adoeceu. Era homem esgalhado, de quase dois metros de altura.

Adoeceu (ou piorou) gravemente dos pulmões, antes dos quarenta anos. Buscou melhores ares para o peito nas madrugadas da Lapa, dobrou as cipoadas de pinga, ajudou Catulo no violão, deu em cima das mulatas, recitou sonetos, trocou definitivamente a noite pelo dia. Enfim, fez tudo que estava ao seu alcance para que a tuberculose o esquecesse. Mas foi inútil.

O Guedes definhava, recolhendo-se exangue a uma casinha em Bento Ribeiro. Só então, fino e desiludido, recorreu à medicina. Dia sim, dia não, pegava o trem e ia à cidade. Como isso se tornasse exaustivo, mudou-se para um apartamento na Cinelândia, perto do consultório de seu médico.

Mas não contava muito com a vida, arrumando-se para morrer com decência. Não comia nada, tossia muito, aguardava com serenidade as cruéis hemoptises. Vez por outra, um companheiro de farra aparecia para contar as últimas, enternecer o pinho, tomar algumas. Era uma extrema unção que o Guedes recebia de boa vontade. Mas quem lhe valeu de fato nessa hora de solidão extrema foi o Gomes, porteiro do edifício, um português gordo e sadio, homem simultaneamente realista e sentimental, como só costumam ser os de sua raça.

O Gomes é quem o ajudava na limpeza do apartamento, quem lhe buscava leite, cigarros e remédios, quem lhe narrava bucólicos episódios de uma infância em Alentejo.

Osório Guedes, ilhado ali no centro da cidade, a poucos passos da Lapa, esperava a morte com a resignação de um frade dentro do claustro.

O Gomes bate-lhe à porta um dia: 

— Seu Guedes, o sinhoire vai me perdoaire... 

— Perdoar de quê, homem de Deus? 

O Gomes suava de tristeza e comiseração. 

— Tenho um reparo muito grave a fazer-lhe... 

— Dê logo o serviço.

— Mas eu tenho o receio de que o sinhoire venha a ficar magoado com o amigo que tanto lhe preza.

— Eu lhe prometo que não ficarei magoado.

— Olhe que lhe tenho em grande estima e não seria capaz de lhe fazer isto de mal. Juro-lhe por minha santa mãezinha que está no céu.

— Desembuche logo.

— Bem... é o seguinte... eu lhe tenho verdadeira amizade, mas o sinhoire não anda nada baim, seu Guedes... nada baim...

— Até aí morreu Neves. 

— O sinhoire anda mesmo é muito mal, muito mal. 

— Continue.

— Para ser de fato franco, o sinhoire anda mais para lá, do que pra cá. Mil perdões, mas o sinhoire já está com um pé na cova.

— E daí? 

— O caixão, seu Guedes, o caixão! 

— O caixão?! 

— Sim, exatamente; o caixão em que vão enterrá-lo.

— Mas eu vou deixar dinheiro para isso, não há problema.

— Problema há, seu Guedes, mas não este. É que andei tirando umas medidas e sei que o caixão não vai cabeire no elevadoire. Uma desgraça, seu Guedes, uma desgraça. O sinhoire me perdoe mais uma vez, mas se a gente deixa essas providências para a última hora é um caso de mil diabos.

Depois de um acesso de tosse, o Guedes acabou comovido com o problema do outro.

— Você deve ter razão. E se o caixão descer pela escada?

— Justamente, seu Guedes, justamente. Pensei também nisso. Mas acho que o sinhoire não vai dar para descer pela escada. Não sei que diabo de estafermo foi construire um edifício deste!

Osório Guedes ergueu-se da cama e resolveu fazer uma experiência definitiva, saindo com o Gomes pela porta da cozinha para um exame local da escada. O português desceu alguns degraus, parando a uma distância de dois metros do patamar.

— O sinhoire segura daí, eu seguro da banda de cá.

E os dois começaram a transportar escada abaixo um caixão imaginário, no qual repousavam os restos mortais de Osório Guedes. O Gomes, com muita prática para carregar móveis, comandava a experiência fúnebre com o fervor dos que sabem.

— Levante um poucochito mais... Tombe um bocadinho para a esquerda... Abaixe aí a cabeça do falecido que eu lhe levanto os pés... O sinhoire percebe agora? Aqui nesta quina, o bicho empaca.

O Guedes concordou com desolação:

— Realmente nesta quina o bicho empaca. Você é um gênio, Gomes.

— Sem falsa modéstia, entendo do riscado. Mas, se o sinhoire não se importa, eu dou um jaito. É que vagou há dois dias um apartamento no térreo. Lá não haverá complicação de espécie alguma. Ainda que o sinhoire tivesse três metros, o caixão sairia fácil que nem uma canoa.

O Guedes disse mais uma vez que o Gomes era um gênio e mudou-se logo para o apartamento térreo, o português sorrindo-lhe numa cumplicidade vitoriosa.

Dez dias depois, seu comprido e maltratado corpo saía em um caixão enorme, mas sem dificuldade nenhuma, para o cemitério do Caju. O Guedes chorava como só costumam chorar os de sua raça.

paulo-mendes-campos
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