Osório Guedes foi um desses magníficos boêmios de trinta anos atrás, da equipe noturna do Sinhô, Zeca Patrocínio, Pequenino... Foi um seu companheiro que me contou essa história meiga e dramática.
Guedes escrevia para jornais e revistas de teatro, ganhou uns dinheirinhos, inverteu esse capital em francesas, viveu algum tempo de orvalho e brisa matutina, acabando por herdar cento e poucos contos, e aí adoeceu. Era homem esgalhado, de quase dois metros de altura.
Adoeceu (ou piorou) gravemente dos pulmões, antes dos quarenta anos. Buscou melhores ares para o peito nas madrugadas da Lapa, dobrou as cipoadas de pinga, ajudou Catulo no violão, deu em cima das mulatas, recitou sonetos, trocou definitivamente a noite pelo dia. Enfim, fez tudo que estava ao seu alcance para que a tuberculose o esquecesse. Mas foi inútil.
O Guedes definhava, recolhendo-se exangue a uma casinha em Bento Ribeiro. Só então, fino e desiludido, recorreu à medicina. Dia sim, dia não, pegava o trem e ia à cidade. Como isso se tornasse exaustivo, mudou-se para um apartamento na Cinelândia, perto do consultório de seu médico.
Mas não contava muito com a vida, arrumando-se para morrer com decência. Não comia nada, tossia muito, aguardava com serenidade as cruéis hemoptises. Vez por outra, um companheiro de farra aparecia para contar as últimas, enternecer o pinho, tomar algumas. Era uma extrema unção que o Guedes recebia de boa vontade. Mas quem lhe valeu de fato nessa hora de solidão extrema foi o Gomes, porteiro do edifício, um português gordo e sadio, homem simultaneamente realista e sentimental, como só costumam ser os de sua raça.
O Gomes é quem o ajudava na limpeza do apartamento, quem lhe buscava leite, cigarros e remédios, quem lhe narrava bucólicos episódios de uma infância em Alentejo.
Osório Guedes, ilhado ali no centro da cidade, a poucos passos da Lapa, esperava a morte com a resignação de um frade dentro do claustro.
O Gomes bate-lhe à porta um dia:
— Seu Guedes, o sinhoire vai me perdoaire...
— Perdoar de quê, homem de Deus?
O Gomes suava de tristeza e comiseração.
— Tenho um reparo muito grave a fazer-lhe...
— Dê logo o serviço.
— Mas eu tenho o receio de que o sinhoire venha a ficar magoado com o amigo que tanto lhe preza.
— Eu lhe prometo que não ficarei magoado.
— Olhe que lhe tenho em grande estima e não seria capaz de lhe fazer isto de mal. Juro-lhe por minha santa mãezinha que está no céu.
— Desembuche logo.
— Bem... é o seguinte... eu lhe tenho verdadeira amizade, mas o sinhoire não anda nada baim, seu Guedes... nada baim...
— Até aí morreu Neves.
— O sinhoire anda mesmo é muito mal, muito mal.
— Continue.
— Para ser de fato franco, o sinhoire anda mais para lá, do que pra cá. Mil perdões, mas o sinhoire já está com um pé na cova.
— E daí?
— O caixão, seu Guedes, o caixão!
— O caixão?!
— Sim, exatamente; o caixão em que vão enterrá-lo.
— Mas eu vou deixar dinheiro para isso, não há problema.
— Problema há, seu Guedes, mas não este. É que andei tirando umas medidas e sei que o caixão não vai cabeire no elevadoire. Uma desgraça, seu Guedes, uma desgraça. O sinhoire me perdoe mais uma vez, mas se a gente deixa essas providências para a última hora é um caso de mil diabos.
Depois de um acesso de tosse, o Guedes acabou comovido com o problema do outro.
— Você deve ter razão. E se o caixão descer pela escada?
— Justamente, seu Guedes, justamente. Pensei também nisso. Mas acho que o sinhoire não vai dar para descer pela escada. Não sei que diabo de estafermo foi construire um edifício deste!
Osório Guedes ergueu-se da cama e resolveu fazer uma experiência definitiva, saindo com o Gomes pela porta da cozinha para um exame local da escada. O português desceu alguns degraus, parando a uma distância de dois metros do patamar.
— O sinhoire segura daí, eu seguro da banda de cá.
E os dois começaram a transportar escada abaixo um caixão imaginário, no qual repousavam os restos mortais de Osório Guedes. O Gomes, com muita prática para carregar móveis, comandava a experiência fúnebre com o fervor dos que sabem.
— Levante um poucochito mais... Tombe um bocadinho para a esquerda... Abaixe aí a cabeça do falecido que eu lhe levanto os pés... O sinhoire percebe agora? Aqui nesta quina, o bicho empaca.
O Guedes concordou com desolação:
— Realmente nesta quina o bicho empaca. Você é um gênio, Gomes.
— Sem falsa modéstia, entendo do riscado. Mas, se o sinhoire não se importa, eu dou um jaito. É que vagou há dois dias um apartamento no térreo. Lá não haverá complicação de espécie alguma. Ainda que o sinhoire tivesse três metros, o caixão sairia fácil que nem uma canoa.
O Guedes disse mais uma vez que o Gomes era um gênio e mudou-se logo para o apartamento térreo, o português sorrindo-lhe numa cumplicidade vitoriosa.
Dez dias depois, seu comprido e maltratado corpo saía em um caixão enorme, mas sem dificuldade nenhuma, para o cemitério do Caju. O Guedes chorava como só costumam chorar os de sua raça.