Fonte: Da quieta substância dos dias. São Paulo, IMS, 1991, pp. 299-302.
Pode surgir por aí algum mal-intencionado elemento que devassando aqueles grandes livros do Registro Civil acabe descobrindo hora e dia em que teve início a minha aburguesada existência e, fazendo as contas, acuse de imerecida ou quem sabe se de abusiva a minha involuntária condição de macróbio. E está certo. As pessoas devem mesmo expelir com abundância e liberdade as suas opiniões, é para isso que lemos Freud e trelemos Jimmy Carter. Peço até que me desculpem os ditos excessos vitais, contra o que neste momento não posso tomar providências. Confesso que tenho sentido, vez por outra, uma entusiástica vocação para morrer, entretanto certos passos do programa funerário me torcem o apetite morredor. Entre eles e em primeiro lugar vem o caso de nosso feio e único cemitério municipal, antes aceitável e convidativo, mas hoje inóspito, calcinado, sem nenhuma privacidade e que se transformou numa trágica sensaboria em constante desenvolvimento.
Quando o cidadão vai para lá como devolução ao fabricante creio que vai sem nenhum élan, vai porque aquilo é que se lhe apresenta sem mais opções. Você já visitou o cemitério Père Lachaise, em Paris? Vale a pena. Lá os Balzac, os Oscar Wilde, os Proust e até os Allan Kardec se instalaram com largueza de espaço, entre as aleias planas e limpas, à sombra dos belos castanheiros selvagens. É um lugar habitável e muito bem urbanizado. O cemitério de Staglieno, em Gênova, esse é de uma impressionante monumentalidade, como os senhores todos já sabem. Os seus defuntos, quer os muito ilustres, como Giuseppe Mazzini, ou os famosos, como os Carlo Erba do bicarbonato e do óleo de rícino, além de muitos outros dos quais nunca se ouvira falar, os Calcagno, os Tomati, os Venzano, repousam sob grandes mármores, que a arte dos escultores mais celebrados recobriu de belezas caríssimas. Staglieno é todo ele uma obra-prima de arquitetura e um museu de estatuária. E não pensem que não tem árvores. Há principalmente ciprestes por toda parte, aqueles ciprestes de penacho, esguios e afilados, que parecem milicianos vegetais da tropa funerária.
Mas isto não é para dar a entender que não possuímos belos mausoléus e que eu só consentiria no meu falecimento se tivéssemos tão exemplares campos-santos aqui por Minas. Um cemitério dá a ficha de uma cultura e de uma civilização. Que poderíamos nós pretender? Penso apenas em um cemitério modesto, simples, virgiliano. Todo o cemitério deveria ser elegíaco. Um lugar que fosse como um poema e que, cantando, chorasse os mortos. E contra isso temos nós, já de princípio, esse absurdo que é ignorar ou proibir a arborização dos cemitérios. E vêm-me à lembrança os versos do poeta mineiro João de Mello Macedo:
Melancolia amável de esquecer as horas,
a contemplar-te,
cemitério humilde da minha aldeia.
Bucolismo suave de cismar,
à sombra úmida dos açoita-cavalos,
debruçando as ramas florescidas,
como bençãos estendidas
por sobre o teu cercado de aroeiras a pique.
Doçura de sonhar,
ao rumor elegíaco do vento,
que vem do capoeirão bravio, em que te ocultas,
embalsamado de aromas,
povoado de cigarras,
de cigarras e de pássaros.
Cemitério humilde da minha aldeia,
sem ciprestes educados,
sem mármores aristocráticos,
sem pompas,
sem fatuidade!
(Apenas, adornando-te a simplicidade,
boas-noites estreladas de roxo,
a emergir do tijolo musguento dos túmulos pobres,
moitas rasteiras de periquitos plebeus,
alastrando-se pela terra fofa das covas,
coqueiros esguios e assimétricos
a soerguer para o alto o verde novo das palmas...)
É aí, cemitério da minha vila,
no teu recanto plácido e rural,
cheio dessa graça simples e tranquila,
que abranda e comove o espírito mais forte,
é aí que chega a ser voluptuoso
o pensamento lúgubre da morte...
Eis um cemitério que apetece. O outro motivo que me tem tornado muito arredio nessa história de morrer é o velório. O velório, segundo está sendo praticado, é uma das maiores provações que o defunto pode experimentar em seu bota-fora. Imagino ser difícil para ele suportar, sem nenhuma possibilidade de retirar-se ou de apresentar queixas, aquele festival de pêsames que regorgita a seu redor. Todo mundo acorre àquela hora derradeira em que a máquina humana fundiu o seu motor e começa a virar ferrugem filosófica. Levou cada qual para esse encontro uma palavra de conforto para a família de luto, um aperto de mão, o nome para inscrever no livro de presenças. Mas levou também casos, problemas, notícias, recados, anedotas, negócios, mil e um assuntos vários e bastantes para um bate-papo que o isole daquela penosa atmosfera, onde ele tem de ficar e ser visto pelos parentes do falecido. Generalizam-se então as palestras, as quais, se é de noite e a rua é quieta, podem ser ouvidas a meio quilômetro. Todos têm o que dizer. Porém o morto, via de regra, é o assunto paradoxalmente evitado, perfeitamente dispensável. Não está ele ali com toda a sua concreta, muda, imóvel, inimitável e tristíssima eloquência de defunto? Contra essa tristeza é que talvez os espíritos se defendam, conversando.
Houve um desses velórios onde dois senhores se encontraram, se cumprimentaram, fizeram-se mutuamente as cortesias de praxe quando conhecidos se encontram e conversando se encaminharam para o ataúde entre velas em que o morto jazia sob flores. Colocando-se os dois de um lado e de outro do defunto, haviam encetado o negócio de uma vaca. Um negócio que seguiu entabulando-se entrecortado de prós e contras, às vezes um inclinando-se para ouvir melhor o outro, pois todos falavam a um só tempo na sala, a barulheira fervia. Alteando cada um por sua vez o tom da voz, parlamentaram longa, difícil e empenhadamente por cima e através do caixão com seu defunto, como por sobre um cocho à sombra do curral, até que, pechinchando um e negaceando o outro, acabaram se entendendo, apertaram-se as mãos, negócio fechado, a vaca foi comprada.
Aparentemente o falecido não tomou conhecimento daquele caloroso debater sobre um caso de economia pecuária, nem de todo o mais que em torno se falava. Todavia, no Bardo Thodol, que é o livro tibetano dos mortos, se afirma que os defuntos ouvem. E ensina mesmo o que devemos dizer-lhes nesta hora de confrontação do "bardo", palavra que significa o estado intermediário entre o instante da morte e o renascimento para uma quarta dimensão. E ninguém nega aos tibetanos a sua autoridade
milenar nessa matéria. O morto ouve. E responde a esse passageiro e derradeiro ultraje com o seu silêncio absoluto, o seu desmedido silêncio de eternidade que, mais dia menos dia, será também ali mesmo ou em qualquer parte a única palavra possível a todos os compradores e vendedores de vaca.