Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.
Ao ler o seu necrológio no jornal outro dia, o pianista Marcos Resende primeiro tratou de verificar que estava vivo, bem vivo. Em seguida gravou uma mensagem na sua secretária eletrônica: “Hoje é 27 e eu não morri. Não posso atender porque estou na outra linha dando a mesma explicação”. Quando li esta nota no Swann, do Globo, me lembrei de como tudo neste mundo caminha cada vez mais depressa. Em 1862, chegou aqui a notícia da morte de Gonçalves Dias.
O poeta estava a bordo do Grand Condé havia 55 dias. O brigue chegou a Marselha com um morto a bordo. À falta de lazareto, o navio estava obrigado à caceteação da quarentena. Gonçalves Dias tinha ido se tratar na Europa e logo se concluiu que era ele o morto. A notícia chegou ao Instituto Histórico, durante uma sessão presidida por dom Pedro 2º. Suspensa a sessão, começaram as homenagens ao que era tido e havido como o maior poeta do Brasil.
Suspeitar que podia ser mentira? Impossível. O imperador, em pleno Instituto Histórico, só podia ser verdade. Ofícios fúnebres solenes foram celebrados na Corte e na província. Vinte e cinco nênias saíram publicadas de estalo. Joaquim Serra, Juvenal Galeno e Bernardo Guimarães debulharam lágrimas de esguicho, quentes e sinceras. O grande poeta! O grande amigo! Que trágica perda! As comunicações se arrastavam a passo de cágado. Mal se começava a aliviar o luto fechado, dois meses depois chegou o desmentido: morreu, uma vírgula! Vivinho da silva.
A carta vinha escrita pela mão do próprio poeta: “É mentira! Não morri, nem morro, nem hei de morrer nunca mais”! Entre exclamações, citou Horácio: “Non omnis moriar”. Não morrerei de todo. Todavia morreu, claro. E morreu num naufrágio, vejam a coincidência. Em 1864, trancado na sua cabine do Ville de Boulogne, à vista da costa do Maranhão. Seu corpo não foi encontrado. Terá sido devorado pelos tubarões. Mas o poeta, este de fato não morreu.
“Li no seu acreditado jornal a infausta notícia do meu prematuro passamento” – assim começa a carta que Gonçalves Dias mandou ao diretor do Jornal do Recife. A carta, imensa, é menos espirituosa do que pretende. Diz o poeta que teve a graça especial de ler as suas necrologias e pôde assim admirar-se do grande homem que foi no século. Daí partiu para o humor negro. E censurou a parcimônia, a somiticaria, a inqualificável avareza com que o Jornal do Recife tratou de sua morte. Enfim, um privilégio: ler o próprio necrológio.