Cheguei um pouco atrasado no cemitério, e precisava perguntar na recepção, ou que melhor nome tenha, por onde andava o meu defunto. O funcionário prestava no momento umas informações a uma senhora, uma senhora de uns quarenta e poucos anos, já meio amarelecida em seu princípio de outono. Ela acabava de formular a seguinte pergunta:
– Qual dos dois o senhor acha melhor? Pode falar com toda a franqueza.
– Mas é mesmo para a senhora? – quis certificar-se o empregado, um sujeito gordo, de bigodes opulentos e tisnados, de um sorriso familiar e complacente, nada fúnebre.
– Sim, é para mim mesma, ela confirmou com naturalidade.
Ele, vagamente galante, ponderou sem convicção:
– Mas a senhora tão moça, tão forte, e já pensando nessas coisas...
– É do meu temperamento, cortou a dama, toda de preto vestida.
– No fundo talvez a senhora tem razão, comentou misteriosamente o funcionário.
– Resolvi deixar tudo arrumadinho. Isso de estar forte não significa coisa nenhuma. A gente nunca sabe quando vem a bicha.
– É isso mesmo, voltou ele com o mais gordo de seus sorrisos; a senhora está dizendo uma coisa que é a pura verdade: a gente nunca sabe.
Seu modo de falar era absolutamente sincero, sem qualquer ironia: trabalhando com os mortos, aquele homem não tinha tempo de pensar na morte, e ouvia com admiração aquelas palavras banais a respeito da insegurança da vida. Para ele, os mortos morriam na hora, chegavam na hora, eram enterrados na hora. Se acaso um cadáver se atrasava ou se antecipava, isso estava errado. Ela arrematou o seu pensamento:
– Coisa que não suporto é dar amolação a parentes. Só por isso é que resolvi escolher a minha cova, pagar ela e ficar em paz.
– Bem, como é para a senhora mesma, vou ser muito franco. O da quadra 16 é melhor. Mas muito melhor.
– Ué, por quê? Aquele perto do muro me pareceu que não tinha nenhum inconveniente. O senhor.quer saber de outra? Coisa que me dá aflição é ficar no meio do bolo. Nunca fui de carnaval. Aliás, desde menina que sempre preferi viver no meu cantinho, onde ninguém pode me amolar...
– Mas...
– Não é preciso dizer. Estou viva, mas nem depois de morta suporto confusão. Além do mais, sou louca por flores... Gostei tanto daquelas, tão bonitas, tão amarelinhas...
– A senhora não me leve a mal, insistiu o funcionário, mas as flores não querem dizer nada.
– Como assim?
– É claro, madame. Nem sei como aquelas plantas nasceram por ali. Mas amanhã elas morrem e fica tudo pelado que dá gosto. Sou empregado aqui e não posso dar com a língua nos dentes, mas, se a senhora quiser ouvir um bom conselho, fique com o da quadra 16, que estará muito bem servida.
– Ah, mas o senhor tem de me contar o motivo.
Pode dizer.
– Madame, para bom entendedor, meia palavra basta.
– O senhor não repara não, mas sou danada de teimosa. Lá em casa até me chamam de Maria Teimosa. Enquanto o senhor não me confessar por que o da quadra perto do muro não serve, não arredarei o pé daqui. (Pausa e sorriso coquete). Daqui não saio, daqui ninguém me tira ...
O funcionário olhou para os lados, deu com a minha cara cem por cento distraída, inclinou-se um pouco, vencido, disse em voz baixa:
– Se a senhora me promete segredo...
– Claro, serei um túmulo, disse ela consciente de estar fazendo humorismo.
– O gordo, num sussurro, quebrou o segredo profissional:
– Aqueles todos ali perto do muro dão água.
– Dão água?!
– Quer dizer, têm infiltração de água.
– Muita?
– Muita.
– Água... água...
Por um segundo esperei com espanto e admiração que ela citasse Shakespeare: Water is a sore decayer of your whoreson dead body. Mas, em vez de Shakespeare, ela preferiu um suspiro:
– Ah, realmente com água é meio desagradável. Ai, ai! Nada nesta vida sai como a gente quer. Pois bem, então vou ficar com o da quadra 16, que hei de fazer! Mas o senhor nem pode imaginar minha tristeza. Achei aquele perto do muro, aquele das florzinhas amarelas, tão simpático, tão repousante! E ando tão cansada, tão enjoada de tanto barulho, tanta confusão...