Sombras e luzes de agosto

Composição, Londrina-PR, 1964. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles

Falar em obsessão seria um exagero, mas não dá para negar que Otto Lara Resende tinha algo de especial com o mês de agosto. Fosse o que fosse, o fato é que fez dele tema de um punhado de crônicas na Folha de S.Paulo – para não falar nos artigos que assinou no jornal O Globo, peças finas nas quais o mês em questão já está no título, como “Punhais de agosto”, ou “13 de agosto: tudo bem”. Quando, em 1992, lhe pedi algo para a revista Elle, o que foi que o Otto desovou? “Agosto, apenas uma rima para desgosto?”, delícia de crônica que, 27 anos depois, acaba de vazar da hemeroteca para enriquecer nosso Portal.

Para ficar apenas nos escritos de Otto reunidos no livro póstumo “Bom dia para nascer”, recomenda-se mergulhar, por exemplo, em “Abusão e palpite”, onde o cronista, em pleno mês de agosto, respira aliviado ao se dar conta de que passou, ufa, o dia 13, sempre farto em maus presságios, sem que tivesse, naquele ano de 1991, promovido os estragos que tanto atormentam quem padece de triscaldecofobia.

Que esquisitice polissilábica é esta? Assim se chama, ensina Otto, o pavor que o número 13 é capaz de suscitar. Uma superstição, escreve ele em “Agosto recomposto”, que pelo menos um episódio veio alimentar: aquele 13 de agosto de 1965 em que o apresentador Gláucio Gil, ao abrir seu programa, ironizou a data aziaga: “até agora, tudo bem” – para em seguida morrer ao vivo, quer dizer, diante das atônitas câmeras da TV Globo.

“Impossível não pensar na rima”, diz Otto em “Sombras de agosto”. Desgosto de que não faltariam ilustrações, enumera ele, a começar pela sanguinolenta Noite de São Bartolomeu, na qual, entre os dias 23 e 24 de agosto de 1572, se contaram aos milhares os protestantes mortos na França a mando do rei católico.

Por estas bandas, agosto foi o mês em que dois presidentes da República apearam ruidosamente do poder: Getúlio Vargas, ao disparar um tiro no peito, em 1954 (“Saio da vida para entrar na História”), e Jânio Quadros, demissionário em 1961 ao cabo de uns poucos meses de mandato, tangido, segundo alegou, por enigmáticas “forças terríveis”. Varreu-se a si mesmo quem tivera como arma eleitoral a imagem da vassoura.

No caso de Jânio, aliás, de quem Otto chegou a estar muito próximo (o presidente bem que tentou tê-lo a seu lado no Palácio do Planalto), as evocações do escritor mineiro empaparam artigos e crônicas – entre estas, “Outro dia, há trinta anos”, “Ao cair da tarde”, “Jânio” e “Ontem, hoje e amanhã”, boa prosa literária salpicada de informação histórica.

Valha um parêntese, já que se falou no “homem da vassoura”: se na presidência ele não chegou a dizer a que veio – e viera na crista de um vagalhão de votos –, o mercurial político paulista (na verdade, nascido em Campo Grande, MS) ao menos proveu de assunto uns tantos cronistas à míngua de inspiração. Um deles, Rubem Braga, escreveu nos anos 1950 duas crônicas intituladas “Jânio” – numa das quais, em 1954, cravou premonitório pé-atrás: “Vamos ver se ele se dispõe mesmo a governar a rica província [de São Paulo], ou fazer dela apenas um trampolim para sua vertiginosa ambição”.

Quando, em 1959, Otto Lara Resende se preparava para voltar ao Brasil, ao cabo de três anos como adido (“adido e mal pago”, completava ele, impagável) à nossa embaixada na Bélgica, seu cupincha Paulo Mendes Campos pôs em crônica uma “Carta a um amigo”, com a qual buscou preparar o espírito do brasileiro talvez já esquecido das mazelas do país natal. Pode-se imaginar a testa franzida com que o destinatário, ainda em Bruxelas, leu a carta, portadora de motivos de apreensão e, ainda por cima, datada de agosto.

Ao contrário de seu camarada de vida e letras, Paulo não chegou a cronicar sobre este mês do ano – mas não deixou de registrá-lo numa página cujo teor, de certa forma, reforçaria a má fama dessa quadra: “Em agosto morreu García Lorca”.

Também Antônio Maria, outro craque do gênero, passou ao largo do mês agourento; mas foi num agosto, o de 1959, que lhe veio inspiração para compor um belo par de crônicas – “O encontro melancólico” e “Coração opresso, coração leve” –, ambas sobre o amor, naquilo que o amor possa ter de sombras, mas também, benza Deus, de luzes.