A data assim de improviso não me lembro. Jânio tinha voltado da Europa, da viagem que fez logo depois da renúncia. Parlamentarismo instalado, Jango presidente. Que destino caberia agora ao Jânio? O José Aparecido me convocou para uma ida a São Paulo. No aeroporto, encontramos o Betinho, que vinha de Belo Horizonte. Sim, o futuro irmão do Henfil. O sociólogo Herbert de Souza, ombudsman de tantas boas causas. Lá fomos nós até um apartamento na praça Roosevelt.

Não falávamos do episódio da renúncia. A pauta era uma espécie de exame vago: o Brasil, o futuro. O ambiente modesto não favorecia nenhuma espécie de formalismo. Havia no ar uma corda esticada. Uma tensão. Vi logo que ia se frustrar qualquer expectativa de que Jânio fizesse alguma revelação objetiva. Quando falava, e falava quase sempre, o ex-presidente não descia dos seus conhecidos recursos retóricos.

Sua atenção estava sobretudo voltada para o Betinho, que tinha trazido de Minas e das lutas estudantis a cabeça ideologicamente arrumada. Percebia-se que a sua análise não coincidia com o discurso empertigado do ex-presidente. Entre pausas e reticências, havia objurgatórias e imprecações. Volta e meia o tom subia até uma linha dramática.

Estava em jogo o Brasil. O futuro. Falar no futuro era falar na mocidade, no papel que lhe cabia. Betinho voltava ao ponto de partida, à organização do povo. E às reformas. As urgentes reformas.

Depois que Betinho saiu, o ambiente se descontraiu um pouco. Não sei se Jânio tirou nessa hora o paletó, ou se apenas afrouxou a gravata. Estava de suspensórios e se recostou no sofá. Nem por isto se podia dizer que se sentia à vontade. De qualquer forma a ausência de Betinho permitiu que a conversa se situasse num plano mais coloquial. Já não havia a convencionalmente obrigatória interlocução da juventude estudiosa.

Fazia calor e a cerveja vinha a calhar. Jânio esperava um telefonema. A campainha soou, ele próprio atendeu. Uma pena: a cerveja estava quente. Mais um pouco e saímos os três. Na calçada, um cego esperava o sinal. Jânio tomou-o pelo braço e o guiou até o outro lado da praça. Até onde me lembro, o gesto não chamou a atenção de quem passava na rua. Recente renunciante, Jânio ainda despertava muita curiosidade. Mas entrou sozinho no carro e partiu. Aparecido e eu tomamos um táxi e fomos visitar um amigo. Se não me engano, era o Oscar Pedroso Horta.

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