Ao mestre, com carinho ou raiva

Aprendendo a lição, Chácara Arara, Londrina-PR, 1950 circa. Foto Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles

Numa das notas que compõem a pequena crônica “O rapaz entrou no bar”, de 1951, Paulo Mendes Campos conta a história de duas vizinhas que, tendo saído no tapa, acabaram na delegacia. Ao saber que uma delas era professora, o delegado, lembrando-se de alguma que tivera, viu chegada a hora de livrar-se de mágoas escolares encravadas na alma havia mais de 30 anos – e não teve dúvida: mandou a criatura escrever 500 vezes, e com “caligrafia muita boa”, a frase “Não devo brigar com a minha vizinha!”.

Não é descabido imaginar que também o cronista, ao relatar aquele ato de vingança, tenha lavado um pouco a própria alma, não tivesse ele acumulado mágoas nos anos em que foi aluno do Colégio Dom Bosco, de Cachoeira do Campo, em Minas Gerais. Pensando bem, não estaria ali uma forma de destacar, por seu anverso, o bom professor, com redobrada ênfase quando é 15 de outubro, o dia dedicado aos mestres?

De fato, era de “alma escura, cansada, envelhecida” que o adolescente Paulo lá chegava para mais um ano letivo, conforme escreve em “Quando voltei ao colégio...”, uma das crônicas nas quais desfiou amarguras acumuladas em seus tempos de Dom Bosco, internato para onde os pais mineiros ameaçavam mandar filhos rebeldes ou vadios. “Guardo a saudade de alguns professores”, admite o cronista, mas também “a vaidade e o ridículo de outros”, e “nenhum sentimento de gratidão” por uma “pedagogia terrorista”. Não chega, porém, à divertida ira de Ivan Lessa, que, sob título cáustico – “Ao professor, com pêsames” –, tece arrepiantes fantasias escolares.

Rubem Braga, ex-aluno do Colégio Pedro Palácios, de sua Cachoeiro de Itapemirim, teve lá duas experiências exaltantes, contadas em “A minha glória literária”: ganhar do professor consagradores elogios por composições (ainda não se dizia redações) sobre “A lágrima” e “A bandeira nacional”. Na sequência, porém, desabou do Olimpo aos infernos da literatura: ao escrever sobre “O amanhecer na fazenda”, talvez contaminado por ousadias do recente Modernismo, ele fechou o texto com palavras que lhe valeriam gozação unânime da turma: “Um burro zurrando escandalosamente”.

O Velho Braga, quando Braga Novo, não devia mesmo ser um bom aluno – e não mudara muito quando, na segunda metade dos anos 1940, compartindo apartamento em Copacabana com Paulo Mendes Campos, dividiu com ele, também, um professor particular de inglês.

“Às vezes o Rubem me pedia para eu dizer ao professor que ele tinha saído”, relembra o escritor mineiro em “Assim canta o sabiá” – e descreve uma cena rotineira, na qual o mestre “subia os degraus da escada e comandava, em seu manquitolante português: ‘Desce, preguiçazinha, não acreditar em mentira de vagabundo’.” É possível que dali tenha nascido uma das mais famosas crônicas de Rubem Braga, a hilariante “Aula de inglês”.

Mais adiante, recém-saído de uma tentativa frustrada de ajudar o filho, Roberto, com a matemática do ginasial, Rubem vai reclamar, na crônica “Ensino”, da quantidade de conhecimentos que os professores, desde sempre, tentavam empurrar nos alunos – os quais, a seu ver, resultariam menos ignorantes se não fossem obrigados a aprender tanta coisa.

O mesmo Braga, no entanto, por aquela altura, início dos anos 1950, disparou três crônicas – “A professora Zilma”, “Para as crianças” e “Hesitação” – na tentativa de ajudar uma educadora de Cachoeiro a conseguir recursos para tocar sua campanha de alfabetização. Algo semelhante, aliás, ao que fará também Rachel de Queiroz alguns anos mais tarde, em “Alfabetização”.

O histórico escolar, por assim dizer, de Rubem Braga não estará completo sem menção à antológica “Sizenando, a vida triste”, na qual, melancólico, deitado ainda, em manhã de chuva, o cronista liga o rádio e sintoniza ao acaso uma aula de esperanto.

Quanto a Clarice Lispector, não poderia ficar de fora de seu currículo de aluna a fala crucial que ouviu, em torno de seus 13 anos, de uma improvisada professora, colega sua mais sabida, conhecedora já da “relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos”. Cruamente comunicados, contou ela em “A descoberta do mundo”, os tais “fatos da vida” a deixaram “paralisada”. Cheia de “perplexidade, terror, indignação e inocência mortalmente ferida”, a futura mãe de Pedro e Paulo Gurgel Valente chegou a jurar, “ali mesmo na esquina” e em voz alta, que nunca iria se casar.