Sem título, 2003. Foto de Edu Simões/ Acervo Instituto Moreira Salles
Dos 77 anos que viveu, Rubem Braga passou uma boa terça parte, a derradeira, de frente para o mar, na legendária cobertura de Ipanema onde se encastelou em meados da década de 1960. Nem assim fartou-se ele da maravilha a que fora apresentado na infância, no inesquecível dia em que, num bando de meninos, deixou sua cidade, Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, para conhecer o mar.
“Era qualquer coisa de largo, de inesperado”, registrará nosso maior cronista, três décadas mais tarde, em “Visão do mar”. “Ficamos parados”, descreveu, “respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam.” Lembrança tão forte quanto fecunda: até a morte, em 1990, o Braga volta e meia ambientaria crônicas – “Duas meninas e o mar”, “Um homem”, “Rio”, “O afogado”, tantas mais – em cenários como aquele, inaugural, indelével.
Também Paulo Mendes Campos viveu, aos 13 anos, epifania semelhante, exclusiva de quem não tenha crescido rente à praia. “Fiquei besta”, relembrou o cronista mineiro em “A primeira vez...”, sobre o dia em que o táxi que o levava a Botafogo desaguou na Avenida Beira-Mar. A impressão que teve então foi de que “aquilo” era “um engano da natureza”, “uma coisa bela e boa demais, um excesso de perfeições e grandezas”. Impressão tão forte que durante um tempo lhe doeu o fato de que “o mar ocupasse tão pouco tempo na conversa dos outros”.
Dado a mergulhos e a pescarias, PMC, quanto a isso, era antípoda do coestaduano e amigo Otto Lara Resende, raras vezes visto numa praia do Rio, cidade que adotou aos 23 anos de idade. Otto guardava, dessas águas, uma respeitosa e prudente distância. Chegou, em “O que diz o mar”, a puxar as orelhas dos surfistas, que, “soberbos, já nem pedem licença para cavalgá-lo”, e das moças, que “vão lá exibir sua nudez”. A uns e outros alertava, em meio a um nevoeiro que embaçava o Rio em pleno verão: “Gente, o mar não é um cãozinho doméstico que se põe no colo. Ele está aí, vigilante.” Era preciso não tomar liberdades com aquele mundo de movente água salgada que, nos diz Rachel de Queiroz em “O mar”, sobre nós exerce “atração invencível” ao agitar “de cobiça e curiosidade o insensato coração dos homens”.
Criados no litoral pernambucano nos anos 1920, Antônio Maria e Clarice Lispector guardariam lembranças fortes de um tempo em que só se entrava no mar por ordem médica, em jejum e antes do nascer do sol. “Na praia”, recorda Maria em “O mar”, “a pessoa mais velha mandava que todos fizessem o ‘pelo-sinal’ e tirava uma ave-maria, a que todos respondiam, encomendando a alma a Deus, no caso de afogamento ou congestão”. Fazia-se “cerimônia com o mar, tinha-se medo dele”.
Não longe dali, também ela em jejum, a menina Clarice se “embriagava” com o cheiro que subia das águas traiçoeiras de Olinda, naquilo que para ela ficaria sendo, vida afora, uma aventura irrepetível. “Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar?”, haverá de perguntar em “Banhos de mar” – para em seguida admitir: “Nunca mais. Nunca.”
Um tanto dessa nostalgia da juventude praieira se respira em “Maresia”, de um paulistano cedo acariocado, Ivan Lessa – cronista que, aliás, faz agora sua estreia neste Portal. Nessa crônica, escrita aos 30 anos, é difícil não ver o brilhante redator do Pasquim e comentarista da BBC nos traços de “um menino de bar que fora um menino de praia”, ou seja, alguém que a vida tornou íntimo das duas acepções, ambas mal-vindas, do substantivo “ressaca”.