“Eu me lembro... eu me lembro... era
E brincava na praia... O mar bramia 
E erguendo o dorso altivo sacudia 
A branca espuma para o céu sereno.

E eu disse à minha mãe nesse momento:
Que rude orquestra! Que furor insano! 
Que pode ser maior do oceano?...”

 

Era assim que recitavam no meu tempo as meninas trajadas de cambraia ou os meninos de roupa de veludo e colarinho engomado, nas festas de fim de ano. Já então era assim o mar. E depois, como antes, vai o mar continuando sem mudança, tal qual pasmava o pobre Casimiro, com a rude orquestra, com o furor insano.

Tão rico e poderoso, tão cheio de mistérios que os vários milhões de anos do mundo não diminuíram em nada a sua atração invencível, a agitar de cobiça e curiosidade o insensato coração dos homens. E creio que quando chegar o último dia do derradeiro ente humano na terra, se ele erguer o olhar moribundo e à sua frente enxergar a onda verde, creio que se sentirá morrer menos infeliz e menos só.

Cruzam os navios à superfície marinha, arriscam-se os submarinos pelas profundidades obscuras. Mas esse formigar curioso é menos que um voejar de mosca na grandeza de um céu de sol. Que se sabe e que se enxerga, que ínfima parcela de verdade descobre no oceano o Professor Piccard? Como serão os seus pavorosos filhos que jamais enfrentaram a luz do dia, que seres e que cavernas e que montanhas e que abismos e que cidades submersas jazem sepultados sob toneladas e toneladas de água negra? Quem pode desmentir as lendas da serpente marinha, das sereias e de outros bichos encantados — quem provou que são invenções? Onde está o “Osvaldo Aranha”?  E por que estranha aberração — será a lembrança de vida pré-consciente que nos leva a buscar na água verde a felicidade e o esquecimento, como se o mergulhar na onda salgada representasse uma volta confortadora ao seio da Grande Mãe?

*

A gente tem que pensar nessas coisas olhando, atirado na areia, o corpo do moço arrancado às ondas do mar. Tão jovem e recém-casado, estão dizendo. Sei que parece um menino, assim meio nu e desvalido, trajado apenas no calção de banho, os lábios roxos, os olhos cerrados numa fadiga tão grande. No seu peito delgado trabalhar o doutor e os enfermeiros, meio entrincheirados atrás da ambulância branca; mas não conseguem afastar bastante a onda dos curiosos que murmura e exclama, e a todo momento um enfermeiro se levanta e pede espaço, mais espaço pelo amor de Deus. De repente a multidão se cala num grande respeito, e só se escuta, muito baixinho sussurro dos que ficam na fila da frente, informando os das filas de trás. É que o jovem doutor, sempre de joelhos na areia úmida, ousava uma tentativa heróica: fazia uma incisão sob as costelas do afogado, enfiava-lhe a mão de peito a dentro e tentava uma massagem no coração parado. O silêncio boquiaberto do povo convidava a chegada do milagre. O doutor suava, decerto tremia na tensão do terrível esforço. Houve quem enxergasse o peito do afogado se erguer, respirando; houve quem visse agitar as pálpebras: houve até quem escutasse um gemido. Mas era tudo ilusão de olhos e ouvidos excitados. O jovem doutor, esse não escutava nada; e assim mesmo continuava lutando, lutando com aquela carne imóvel, com o coração vazio já de sombra de vida, que ele tentava ressuscitar. Infelizmente o milagre não veio. E o morto continuou morto, magro e patético naquela nudez dolorosa, que até bem pouco fora uma sadia nudez esportiva. Afinal o doutor desistiu, levantou-se lentamente da areia onde se ajoelhava há horas, e arrancou com gosto brusco o estetoscópio do pescoço.

A maré que enchia, mandou uma pequena onda bem perto do banhista morto. Mais uma segunda chegou quase a lhe lamber a ponta dos pés gelados. E então os enfermeiros se apressaram em retirar dali o pobre moço, como se tivessem medo de que o mar quisesse carregar de novo a sua presa para o fundo.

rachel-de-queiroz
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