Campanha publicitária da Indústria de Bebidas Cinzano S/A - White Label, 1975. Foto de Chico Albuquerque. Chico Albuquerque/ Convênio Museu da Imagem e do Som - SP/ Acervo Instituto Moreira Salles
Se nos outros meses do ano a gente não precisa de pretexto para brindar a alguma coisa, ou mesmo a coisa alguma, que dirá em dezembro, quadra do ano em que tudo nos incita, convoca e até obriga a um festivo encher & esvaziar de taças e de copos? Não terá sido diferente o panorama para os integrantes deste Portal da Crônica Brasileira, no qual, até onde a vista alcança, o destino não escalou um só abstêmio. Vários de nossos craques destilaram (ou fermentaram) crônicas sobre a bebida – e nenhum deles para condená-la.
Ao contrário. Rubem Braga dedicou toda uma coluna, “Cachaça”, a denunciar o que lhe pareceu “sinistro plano de subversão nacional”: um projeto do deputado paulista Paulo Abreu, no início dos anos 1950, para simplesmente pôr fora da lei a cachaça. O cronista reagiu com veemência federal: “Que o deputado invente outro jeito de salvar o Brasil”. A bebida em questão não ficaria de fora de uma pequena crônica, “Momentos”, em que o velho Braga enumera “lembranças dos momentos de conforto físico, de felicidade animal tão perfeita que chegam a produzir uma espécie de lirismo sem endereço”. Mais tarde, ao escrever “Um sonho de simplicidade”, ele haverá de detalhar o que em “Momentos” fora dito en passant – e reconstituirá a noite fria em que, em cafundós amazônicos, um morador local lhe proporcionou rede, peixe e cachaça. “Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo do Acre?”, se pergunta o Braga, tantos anos depois.
Como seu confrade capixaba, mas em tom mineiro, Otto Lara Resende saiu em defesa da bebida, no caso por considerar descabida a lei que proíbe a sua venda em dia de eleição: em “Os bons espíritos”, ele não vê incompatibilidade entre o “copo competente” e o “espírito público”. Em “Festinha de aniversário”, a propósito dos 42 anos do então presidente Collor, deixou claro: “Também gosto de um uísque”. Por fim, muito leitor terá aprendido com Otto, mestre em distribuir luzes sem humilhar a ignorância alheia, que há na língua portuguesa uma alternativa para o francês sommelier – e tascou no título, “Escanção e luas”, a palavra feia que, corrente em Portugal, é praticamente desconhecida nesta antiga colônia. De quebra, lembrou que ela comparece num poema de Vinicius de Moraes, “Balada de Pedro Nava”.
Também numa composição poética (ainda que em prosa), “Balada de Luís Jardim”, Paulo Mendes Campos fez um verdadeiro manifesto em favor do álcool como alternativa para os males da alma. “Não utilize o suicídio”, recomenda, “Use o álcool”. E insiste: “Não se mate de amor: beba de amor”. Em “Um homenzinho na ventania” (que, sem o artigo, daria título a uma de suas primeiras coletâneas de crônicas), Paulo acompanha por muitas horas os passos cada vez mais trôpegos de um cidadão “pacato e triste”, “casado com mulher fiel e feia”, o qual, por ser o dia dos seus 40 anos, excepcionalmente se embriaga, num devastador porre solo. De bar em bar, ele arrosta “a arruaça do vento” que naquele dia assanha as ruas do Rio de Janeiro.
Bem mais que melancólica é a noitada belo-horizontina de outro infeliz – “Chamava-se Jacinto” –, também ele às voltas com um “vento mau”. Haverá de terminar, com irremediável desconsolo de menino triste, prostrado sob um “céu estrelado e duro como um céu pintado”. Recomenda-se rebater tais doses de melancolia com uma de Paulo Mendes Campos bem-humorado, picada em que não é menos brilhante: o de “Salvo pelo Flamengo”, história do dia em que, farejando risco para a própria pele, esse botafoguense incurável achou melhor trair o clube do seu coração.
Com mão de romancista, Rachel de Queiroz traça em “Tragédia de casamento” a história do amor que juntou moço “forte, grosso, simpático” e moça “magrinha e carinhosa” num idílio que não tardará a descarrilhar, de vez que “ele ia dando para beber e ela ia dando para engordar”, em ritmo de “um copo a mais hoje, meio quilo a mais amanhã”. O desfecho... bem, vá correndo conferir. E também o de “Era um homem muito bom”, crônica de Antônio Maria em que “uma mulher pequena” se empenha numa tarefa acima de suas forças físicas, mas não de seu amor esfomeado, a de tanger até a sua casa “um bêbado grande” a balbuciar o nome de outra.