“O carioca teve ontem uma pequena mostra do que é um furacão”
O homenzinho era pacato e triste, letra K. Embriagava-se raramente. Era fraco e pobre, mas de certas manhas atrás da timidez. Morava na Glória, tinha filho de quinze anos e mulher fiel e feia.
Alegando crise de asma, fechou o ponto às três horas. Dez minutos depois, podia ser visto a pedir docemente uma cachacinha no Flor de Lótus. Às quatro, em outro botequim da Esplanada, golpeava o balcão com destemor: “Me dá uma vela acesa aí”.
Serviram-lhe a cachaça. “Barra limpa?” O senhor não deve nada, informou-lhe o empregado. “Então, outra vela acesa aí.” Às cinco e pouco, o homenzinho revelava, aos comedores de pastéis do outro boteco em pé, que era o dia de seu aniversário. Quarenta anos! Um bêbado cantou-lhe arrastadamente “parabéns a você”. “Duas velas aí.”
Às seis, esperava os companheiros num bar. Mulher e filho o aguardavam para a comemoração. A esta lembrança, ingeriu duas aspirinas e quatro comprimidos contra acidez. Passou a beber uísque nacional.
Às cinco da madrugada, depois de ter dormido sobre a mesa, quando três conhecidos o abandonaram, o leão de chácara duma boate do Leme tomava-lhe todo o dinheiro da carteira, insuficiente para a despesa. Hoje é dia de meus anos, tentou explicar. O gigante empolgou o homenzinho pela orelha e o atirou na calçada. A porta se fechou.
As forças que compõem o equilíbrio de todas as coisas pareciam desatadas sobre a Terra. Sem saber que sopravam sobre o Rio ventos de oitenta quilômetros por hora, nada entendeu o homenzinho, a não ser que estava sendo atraído para o mar. À primeira lufada, doeu-lhe o peito asmático. As árvores faziam ângulos agudos na tormenta. Quis andar, não conseguiu. Insistiu, foi empurrado para trás. Sua consciência se desfazia dentro do torvelinho. Devem ter jogado a bomba, pensou.
Era a fragilidade mesma contra a estupidez da ventania. Suava frio, cabelos arrepanhados, roupas em desalinho. Com esforço, tentou aproximar-se da boate; perdendo o equilíbrio, foi catapultado a três metros para trás, batendo de costas na amendoeira, que o reteve. A mão direita sangrava. Amêndoas arrancadas pelo vento o bombardeavam. Colando as costas ao tronco, agachou-se até sentar-se. Doía-lhe a espinha. Protegendo-se com os braços, começou a pensar na maneira de livrar-se da ventania.
A madrugada, embora meio escura, ardia-lhe nos olhos míopes. Depois de limpar o ferimento, levantou os óculos a fim de passar a ponta do lenço nos olhos. O vento arrebatou-lhe o lenço. Na ânsia de agarrá-lo, os óculos foram sacudidos sobre a calçada. Um dos vidros partiu-se na queda, o resto rodopiou na esquina e se deteve no hidrante. Sem óculos, o mundo ficou mais remoto e indeciso. Sua visão, medíocre desde a infância, era agora agravada pela embriaguez e pelo grande vento que confundia o mundo. Apertando as pálpebras, quis descansar um pouco, mas, se um sentido declina, outro se esperta, e passou a ouvir melhor o alarido, a algazarra das árvores, as contorções estrepitosas do mar, vidraças que se estilhaçavam, objetos que se despencavam, numa selvagem modulação de uivos, zunidos e assovios. Reabriu os olhos, tapou os ouvidos.
Espessas nuvens de pó em rajadas rudes. Folhas de papel, gravetos, galhos se projetavam sobre seu corpo. O homenzinho sentiu medo e gritou por socorro. Punhados de poeira entraram-lhe na boca; cuspiu, tossiu, convulsivo, vomitando sobre as pernas, sentindo a necessidade de chorar. Mas um homenzinho não chora, um homenzinho vai lutando até o fim.
Das vizinhanças chegavam ruídos de garrafas entrechocadas. Esperou que uma porta se abrisse. Nada. A arruaça do vento não lhe permitia localizar os tinidos. Gritou por socorro pela segunda vez. Voz débil, pulmões cansados. O vento violento encarrega-se de transformar em nada, num vagido pueril, que se esgarçava em mil fios inaudíveis, o apelo.
A lente intacta, presa à armação, continuava detida no hidrante. O sensato era buscá-la. Ergueu-se com dificuldade, sempre enganchado ao tronco, urinou a favor do vento. O vento rugia mais brutal e excêntrico, assanhando a rua. Uma tonteira enegreceu-lhe mais a vista, suas energias falhavam: receou, e dessa vez era certo, que podia ser compelido como um espantalho que o mar engole. Por que não seguira para casa na véspera? Mas quem pode saber?
Esfolando-se todo, ganhou o chão outra vez. Girando, colocou-se de outro lado, de onde distinguiu o que sobrara dos óculos. Repelões enviesados começavam a desprender a armação da saliência na qual se enganchara. O vento ia atingindo a força plena que lhe fora prometida; o homenzinho entrava relutante no crepúsculo. A amendoeira começou a estremecer nas suas raízes, assim como deve ser um terremoto numa pequena ilha. Perturbado com a própria decisão, o homenzinho soube que iria naquele instante sair em busca da lente. Primeiro, enrolou-se em si mesmo como um tatuzinho; estatelou-se no chão como um lagarto; começou a rastejar como uma cobra. Mar e vento gritavam. A empresa até o objeto era coisa de três metros. Percorrera a metade do caminho, quando um pesado galho abateu-se com brutalidade na sua cabeça. Rastejou ofegante, a mão atingiu a ponta dos óculos, a lente se desprendeu, rolando até a rua.