Ora deu-se ultimamente um caso muito triste por estas bandas onde moro. O moço casara com a moça quando eram ambos bastante jovens – ele forte, grosso, simpático, tinha acabado o serviço militar, ninguém lhe conhecia vícios. Ela, magrinha e carinhosa, dava gosto vê-los de braço quando namorados, passeando por essas beiras de praia, muito chegadinhos, cochichando. Chegado o tempo de noivar o rapaz pediu a menina ao pai e o pai deu, aprontaram o enxoval, correram os banhos, alugaram um bom cômodo com direito a fogareiro na cozinha numa casa para os lados do Jequiá. Houve docinhos e vinho do Porto no dia do casamento, a noiva foi ao civil na cidade trajando uma toalete cinza e chapéu com veuzinho de cor idem que chamou a atenção do pessoal na barca; o religioso de vestido e véu, tudo branco, naturalmente, muito chique, teve marcha nupcial e sermão, parecia quase casamento de fita de cinema como disse a madrinha, que era tia do noivo e reluzia num vestido de cetim cor-de-violeta. Casados, foram vivendo e até razoavelmente felizes, enquanto a transformação por que ambos iam passando não se tornava por demais aparente; é que ele ia dando para beber e ela ia dando para engordar – um copo a mais hoje, meio quilo a mais amanhã, – e entregues os dois cônjuges a esses vícios desgraçados, ele na bebida, ela na comida, que se podia esperar senão discórdia e infelicidade?
Ele chegava em casa puxando um fogo bem rijo. Olhava a mulher, recordava as formas que ela tinha nos tempos dantes, a cinturinha que se abarcava com as mãos, as pernas esbeltas de maiô, mas o que via agora? Aquele despotismo de carne e banha, a criatura rebentando nas costuras, esfogueada, o pescoço de touro, um suor grosso porejando em redor da boca. E ficava furioso, achava que tinha sido logrado, que houvera até troca de pessoa, se tivesse dinheiro mandava anular o casamento. Por fim o desgosto crescia tanto que ele não podia se conter, levantava a mão e batia na companheira. Ela gritava, se maldizia, pedia a proteção dos vizinhos e vez por outra ia dar queixa no distrito, que não ficava longe. E quando o delegado indagava do homem como é que ele tinha coragem de espancar a sua senhora, o infeliz explicava apenas: “Olhe para ela, seu comissário. Veja como essa mulher engordou. Até não dá nojo a vossa senhoria?” O comissário não olhava que não era bobo, dava era um conselho, perguntava à mulher se queria que o marido ficasse no xadrez, coisa em que ela só consentia quando era noite de sábado para domingo. Outro dia qualquer precisava ele ir para o trabalho, ganhar o feijão e a carne, duas coisas que eram o começo e o fim da desgraça da pobre, pois sem feijão não vivia e com feijão engordava. Coitada, tomava vinagre, chupava limão, comia em pé, fazia promessa, passava o dia inteiro sem beber água, praticava qualquer loucura que lhe aconselhassem para emagrecer. Só não fazia mesmo cortar a comida, lhe tirassem tudo mas não lhe tirassem o prato cheio, havia de enfraquecer e adoecer do peito, e além disso achava que nem comia esses excessos, era mais calibre seu do que outra coisa. Com o tempo, vendo que não emagrecia mesmo, foi se acostumando com o corpo e até gostando dele, assim fornido. E com o amor de si mesma, ia crescendo nela o ódio pelo marido, crescendo e inchando e empeçonhando, até que um dia não pôde mais e teve que dar um jeito. Pegou uma meia-garrafa de conhaque de alcatrão que uma conhecida tinha lhe dado num tempo de tosse, (e que ela trazia escondida por causa do marido), pôs dentro uma dose forte de formicida, e deixou a garrafa na prateleira, bem à vista. Sabendo que ele não tendo em casa outra coisa que beber, não resistiria ao conhaque. E contava com o gosto esquisito do alcatrão para disfarçar o sabor do formicida. Assim pensou e assim foi. O marido chegou em casa – era numa sexta-feira – tão bêbedo que nem bateu nela. Deitou-se, dormiu. No meio da noite acordou, acendeu a luz, viu o conhaque, achou que podia lavar a boca com ele para tirar o amargo. Parece que não teve tempo sequer de estranhar o gosto, porque logo caiu no chão, estrebuchando e com pouco estava morto. Veio a ambulância da assistência – e com essa é que a mulher não contava – o médico não acreditou na história do ataque que ela contou; não sei que sinal de veneno ele viu, sei que apanhou a garrafa que ela pensava não precisar esconder – e aí veio a polícia, acabou-se tudo.
Foi presa e está esperando o júri. Uma pessoa que a visitou disse que a achou muito tranquila, sem queixas e sem vontade de sair. Verdade que desde que deu para engordar ficou preguiçosa e o mais longe que ia era na vizinha ou no açougue. Assim não estranha a cadeia. Além do mais diz que a boia da prisão não é tão má quanto se conta.