Carlos Drummond de Andrade, Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1982. Foto de Rogério Reis
“Uma amizade”, escreveu Drummond, “pode ser considerada perfeita se resiste ao fato de ambos os amigos serem escritores do mesmo gênero – e bons.” A dele mesmo com João Cabral, outro imenso poeta, não resistiu; sem ruptura explícita entre o antigo mestre e o ex-discípulo, mas com enviesada e, não raro, divertida troca de farpas.
Drummond talvez tivesse razão ao dizer também que “de ordinário, o convívio das letras não cria amigos, mas cúmplices”. Na cena literária, de fato, atulhada de vaidades mendicantes – para incrustar esta pérola de Nelson Rodrigues –, não chegam a fazer maioria os escribas de bom quilate que sejam também nobres o bastante para reconhecer os méritos e acarinhar confrades de estatura comparável. Mas eles existem, e aqui está, para começar, Otto Lara Resende – dos nossos bons cronistas, quem sabe o que mais fartamente escreveu sobre seus companheiros de ofício.
A Paulo Mendes Campos, por exemplo, de quem esteve próximo desde a adolescência, Otto dedicou, entre outros, dois belos textos escritos na morte do refinado cronista e poeta: “Chegamos juntos ao mundo” e “Ao menino e ao destino o poeta permaneceu fiel”. Sim, chegaram juntos ao mundo, no mesmo ano de 1922, Paulo em 28 de fevereiro, Otto em 1º de maio – aquele “Bom dia para nascer” que daria título à sua coletânea póstuma de crônicas.
Da geração mineira que precedeu a sua, Otto dedicou a Murilo Mendes as graças e delicadezas de “Mozart está tristíssimo”, crônica em que relembra extravagâncias saborosas do grande poeta, entre elas a iniciativa de telegrafar a Hitler, em 1939, em protesto contra a invasão de Salzburgo, a cidade austríaca onde nasceu o compositor. Ou de se deitar no asfalto da avenida Rio Branco, na então capital do país, para melhor admirar o azul do céu. Ou, ainda, na entrada da igreja da Candelária, em 1934, recém-convertido ao catolicismo, dar sua bênção ao atônito cardeal Eugenio Pacelli, a poucos anos de tornar-se o papa Pio XII.
Sobre Drummond, Otto escreveu um punhado de crônicas. Entre elas, duas em que, com muita graça, busca precisar um detalhe físico que a certa altura semeou controvérsia e mobilizou todo um time de amigos de quem já não estava disponível para verificação presencial. O cronista da Folha de S.Paulo embarcou no assunto em “O poeta e seus olhos” e liquidou a questão em “Azuis, verdes, castanhos”, quando, sem titubear, cravou coluna 1: eram azuis os olhos com que Drummond contemplara o mundo. Escreveu ainda “Quanto vale o poeta”, a propósito do uso do rosto do vate itabirano numa nota de 50 cruzeiros, a qual, ao contrário da obra drummondiana, só fez depreciar-se, rapidamente convertida numa insignificância monetária.
Otto Lara Resende escreveu também sobre Rubem Braga, no primeiro aniversário da morte de nosso maior cronista. Em “Um ano de ausência”, ele revisita a cobertura de Braga em Ipanema, que frequentou com assiduidade rara entre os mais próximos do antigo morador. O mesmo Rubem que, por sua vez, em setembro de 1980, mandou a Vinicius de Moraes um “Recado de Primavera”, para anunciar ao poeta, falecido meses antes, que a mais radiosa das estações, agora sem ele, estava de volta ao Rio de Janeiro.
Se Rachel de Queiroz, em “Manuel”, saudou os 80 anos do poeta Bandeira, ainda vivo e atuante em 1966, dois outros cronistas falaram de Mário de Andrade após seu brusco e prematuro desaparecimento, em 25 de fevereiro de 1945. O jovem Paulo Mendes Campos, a meses de trocar Belo Horizonte pelo Rio, relembrou o amigo, quase 30 anos mais velho, com quem estivera pouco tempo antes e de quem guardara a impressão de “um cansaço oculto em delicadeza e vontade de ajudar”.
O mesmo não poderia dizer Rubem Braga, que nos 10 anos da morte do escritor paulista rememorou na crônica “Mário” a aridez, quando não a aspereza de suas relações com ele. Falecido aos 51, o autor de Amar, verbo intransitivo talvez não tenha vivido o bastante para se acertar com o jovem capixaba, só na aparência merecedor do rótulo de intratável “urso” que alguém lhe pespegou. Não tendo existido entre os dois o mais remoto laço de amizade – para lembrar a frase de Drummond, não foram sequer cúmplices –, Rubem Braga não viu sentido em ir participar, em São Paulo, de uma cerimônia em memória de Mário de Andrade. Teve, porém, a grandeza de render “limpa e fervorosa homenagem”, senão ao homem, ao escritor que jamais deixou de admirar.