Manuel Bandeira faz oitenta anos. E, vendo-o, se verifica que oitenta anos não é idade nenhuma, é mocidade, é adolescência, eterna juventude. Sei que essas coisas são de uso dizer aos aniversariantes idosos; mas no caso de Manuel acontece que são verdades. Quem duvidar faça um teste: se alguém vir Manuel na rua, atravessando muito ágil e fagueiro um cruzamento, aposto o que quiserem, aposto tudo, que jamais esse alguém que o vê perguntará: "Quem é esse velho?" ou "Quem é esse senhor idoso?" Se não perguntar "Quem é esse rapaz?" no máximo dirá "Quem é esse homem?"

Não é só o físico juvenil, a esbelteza do mancebo − é qualquer coisa que está dentro dele e que mantém o poeta permanentemente em flor como uma sempre-viva. Dizem que anjo não fica velho; e como então Manuel, que é melhor do que anjo, ficaria?

É engraçado, estamos aqui falando do maior poeta vivo do Brasil, aliás, segundo o nosso melhor juízo, o maior poeta do Brasil − período; no entanto, no entanto, há qualquer coisa no homem que quase o impede, assim grande, louvado, imortal, consagrado, de ser um monumento nacional. Todos lhe reconhecemos a glória laureada − claro, claro!

Mas antes de o admirarmos, ou ao mesmo tempo em que o admiramos, acima de tudo e, principalmente, o amamos. Com ternura, com um carinho minucioso, com zelo enternecido, com requinte sentimental. Se imaginamos que qualquer coisa vai preocupar, vai penalizar Manuel, todos nós ficamos aflitos, todos nós nos confrangemos. E assim mesmo egoístas como todos somos, faremos o possível para poupá-lo a alguma mágoa, porque doerá na gente pior do que dói nele, já que ele não padecerá de sentimento de culpa e nós padeceremos, ao saber que Manuel sofre.

Suas alegrias viram alegrias nossas; suas admirações viram admirações da gente; suas preferências a gente as adota; as coisas e as pessoas de quem ele gosta é como se pusesse nelas uma marca − sobre ela impusesse as mãos. Nenhum de nós passa sem enternecimento pela passarela do Reidy, defronte ao Museu de Arte Moderna; é "a ponte do Manuel" −, a ponte que ele diz que lhe dá consolo olhar, nas manhãs em que acorda melancólico. É o beco, a rua, as velhas casas onde morou. Até os moleques em que ele fala, nas velhas Crônicas da Província, a gente os tenta identificar, nesta subida de Santa Teresa, como se procurasse parentes perdidos. Outro dia, foi grande alvoroço aqui em casa porque nos apontaram, passando na rua, um homem que seria um dos componentes da trinca do Curvelo, um daqueles que espinafrava a porta do poeta; e daí talvez nem fosse, o informante não merecia muita confiança. Mas bastou a simples lembrança para fazer sensação.

Li por aí, num jornalista, que Manuel "além de grande poeta" era um homem que se sabia fazer amar − e eu não sei se isso é propriamente a verdade. Acho antes que esse dom que ele tem de se fazer amado, essa ternura que desencadeia nos peitos mais ásperos e menos amadores, decorre propriamente da sua poesia, é elemento da sua poesia, vem daquela força que ele tem de descobrir o coração da gente e o segurar na sua mão. Em Manuel, pessoa com poesia se confundem, na realidade ele é a poesia. O amigo que o abraça, a mulher que ele ama ou amou, o leitor que se comove ante um verso, será que não obedecem todos à mesma emoção, não foram sugestionados pela magia poética, pelo dom misterioso e terrível? Talvez o homem apenas se aproveite das conquistas do poeta, e com elas faça o seu patrimônio pessoal.

Mas a gente nunca o poderá dizer ao certo. Tudo isso são mistérios, já que o grande mistério é a própria poesia. E a pessoa e a poesia por tal modo se entrelaçam e se confundem no homem Manuel Bandeira (tiveram oitenta anos para estabelecer essa simbiose singular), que já hoje nenhum olho humano poderá discernir onde está cada um, ou mesmo se nos dois existe um cada um.

O melhor é não querer distinguir nada. O melhor é amar, admirar, reverenciar com graça e humildade. Graça e humildade − curioso, e a gente fosse fazer o retrato moral do poeta, não seriam essas as primeiras qualidades que lhe descobriríamos? Graça total, graça de Deus, graça de graça; e humildade, uma espécie de humildade cristalina, sorridente, aliada, muito de longe, com uns leves traços de arrogância pernambucana.

Bem, eu dizia que o melhor é amar. Mas nem adianta o conselho. Pois como se poderá amá-lo mais do que o amamos? O que a gente precisa lembrar são as coisas solenes: que Manuel completa uns gloriosos oitenta anos, que Manuel é Monumento Nacional mesmo, que o Manuel do nosso carinho é o Poeta do País, o Príncipe, o Maior, o Laureado. Que Manuel é o BARDO.

rachel-de-queiroz
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