Amor à prova d’água & outros drinques

Quiosque "Chopp Berrante" no Passeio Público, Rio de Janeiro-RJ, 1900 década. Foto de Augusto Malta. Arquivo-Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Às voltas com uma crônica que precisa escrever, mas que reluta em descer ao papel, Rubem Braga caminha à noite sob a chuva, e, antes de buscar abrigo no café da esquina, repara no casal que namora na calçada, indiferente ao aguaceiro. A crônica, que dali a pouco finalmente vai brotar, será devedora dos amantes empapados de ternura e chuva, mas de outro par também – as duas bagaceiras que o cronista sorveu para melhor saborear aquele amor à prova d’água.

Já em Uma conversa de bar, o Braga é mais que simples observador. Lá está com a moça, os dois envoltos numa penumbra que é também da alma, pois sobre eles paira uma certeza não enunciada, porém dura, mais que isso, inapelável. Tão penosa que, à falta de palavras, ele se entrega ao “hábito brasileiro” de fazer girar o gelo do uísque com o dedo indicador. Ela ralha com ele, por beber depressa demais e pelo bigode que ficou “horrível”. Mais que depressa, ele apanha a deixa e lhe faz uma proposta, capaz de provocar talvez mais do que um sorriso.

Em Fim de ano, Rubem Braga é “um homem sozinho, numa noite quieta”. Nem tão sozinho assim, pois em sua “confortável melancolia” ele tem a companhia de um uísque de raça, presente de um amigo. É 24 de dezembro, e considera “sem saudade nem mágoa” o ano que se vai, e, numa noitada que apenas principia, bebe “gravemente em honra de muitas pessoas”.

Não há registro de que Rachel de Queiroz tenha sido, como o Braga, uma contumaz consumidora de bebida alcoólica – mas intimidade com o assunto não lhe faltava, a julgar pela crônica em que descreve variados tipos de bêbedos (o dicionário Houaiss prefere esta forma a “bêbados”) com os quais topou numa noite de sábado. Entre eles, um camarada que, no bonde, vai tagarelando num constrangedor “inglês de cais do porto”. Outro, “nem gosta tanto de beber” – se o faz, é apenas para exercer o seu direito à embriaguez. Há um bêbedo viúvo que “ninguém sabe se chora e bebe porque não pode com as saudades da defunta ou se bebe e chora porque a defunta não pode mais com ele”. O “lírico”, por sua vez, destituído de violão & afinação, ainda assim se põe a “ganir” uma serenata à porta da amada. E tem o bêbedo suicida, “que já quis se matar 11 vezes”, sem êxito, pois “se embriaga tão depressa que quando se lembra de morrer não acha uma farmácia aberta para comprar o formicida”.

Poderia entrar na lista de Rachel o Justino Antônio, mendigo original que João do Rio tinha na conta de “particular amigo”, “homem considerável, sutil e sórdido”, e que, ao falecer, mereceu crônica. Original, entre outros motivos, porque só se embriagava às quintas-feiras, assim como só fumava às terças e domingos. Não pedia nada – sumariamente cobrava o que a sociedade lhe devia, sem jamais agradecer: se alguém lhe dava alguma coisa, por generosidade é que não era, e sim por obrigação.

O petulante Justino de João do Rio era bem o avesso dos mendigos que Otto Lara Resende evoca em Nossa rica virtude. O cronista relembra o “tempo em que um pobre passava na porta da sua casa e, bem educado, tocava a campainha” e, “com uma lata na mão, pedia um resto de comida, pelo amor de Deus.” Tratava-se de “um rito civilizado” em que “a gente até conhecia o pobre de vista e de nome. Freguês pontual, procurava não incomodar”. Seu bom comportamento propiciava, a ricos e remediados, o exercício da caridade. Mas ai dele se “cheirasse a álcool”: “perdia ponto e até a comida, se logo não se corrigisse”. Quanto a ele, Otto Lara Resende, terá pela primeira vez “cheirado a álcool” aos 15 anos, quando um cupincha dois meses mais velho lhe apresentou o néctar escocês contido numa garrafa de White Horse. É o que ele conta em O jovem poeta setentão, homenagem ao camarada vitalício Paulo Mendes Campos, falecido meses antes de chegar a essa idade.

Trinta anos depois daquela peraltice etílica, ocorrida em São João del-Rei, onde ele e Otto eram estudantes, Paulo Mendes Campos, à beira dos 45, vai se declarar, em matéria de bebidas, “um homem derramado”, “entornado”, "esvaziado de seu conteúdo”, a caminho da “perfeição do vazio”. É banhado por esse estado de espírito que ele nos dá mais uma crônica magnífica, próxima do poema em prosa, um réquiem em louvor de legendários bares cariocas de que foi frequentador e que, agora extintos, por isso mesmo têm o condão de “coagular o tempo”.

Autoridade no assunto, Paulo está em condições de dissertar sobre os dois tipos de “bebedores” – o pau-d’água e o bom-copo. E quem disse que este último tem a vida mansa? A realidade do bom-copo, nos faz ver o cronista, é semelhante à do sujeito que, sendo um ás do violão, se vê condenado a se exibir, mesmo quando não queira, em aniversários, batizados, casamentos, “tudo”, e ali, além de tocar, “sorrir, cantar, repetir, ficar”. Nunca o bom-copo tem sossego, pois dele não se admite que tome um pileque, que o igualaria a um reles pau d’água. Mas até ao melhor dos bebedores acontece às vezes de passar da conta. Nesse caso, o jeito é embarcar no sábio roteiro que Paulo Mendes Campos propõe em Bom dia, ressaca, com instruções terapêuticas que incluem, no final do dia pós-pileque, “um chope bem tirado”.

Antônio Maria era outro que tinha lá sua receita para rebater excessos alcoólicos: as orações a Santo Antônio desfiadas, à beira da cama do patrão, pela Edith, sua cozinheira e “diretora espiritual”. Certa vez, numa reunião em casa de amigos, ele bebeu além conta, pois fazia frio. Se não fizesse, beberia igual, porque aquele “Dia do Papai” autorizava copiosos goles, não só por ter ele posto no mundo a Maria Rita e o Antônio Filho como em homenagem “a todos os órfãos permanentes e temporários da vida”. Com tais motivações, enxugou uma garrafa. No dia seguinte, “nada de dor de cabeça, boca amarga, pés inchados”: sua ressaca se traduzia, não em dores, mas num “profundo estado de culpa”. Sente-se culpado, para começar, “por haver enfeado” o corpo de sua mãe, durante os meses em que foi gestado – para não falar nas dores que causou a ela na hora do parto: “Fui a criança que mais doeu na família”, penitencia-se Antônio Maria.

Seu conhecido bom humor não comparece na Canção de homens e mulheres lamentáveis. Ali, ele não tem ânimo sequer para se transformar no “homem banal” – aquele que “se encharca de álcool para apregoar a desdita”. O que facilitaria as coisas, ironiza ele: embriagado, promoveria um bafafá ao cabo do qual se transformaria em notícia – “Preso o alcoólatra quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country [Clube].” Seis dias depois, o cronista foi notícia sem chegar a tanto, na madrugada em que um infarto o fulminou na porta de uma boate em Copacabana.

Saideira

Não vamos pedir que você se lembre de um Rés do chão de dois anos atrás. Mas o assunto em Doses de boa prosa, mesmo em repeteco, talvez não lhe seja indiferente, o que nos anima a deixar convite para mais uma rodada lítero-etílica, a ser degustada sem qualquer moderação.