Fonte: O Jornal, 12/08/1964.  Publicada no livro Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria, Todavia, 2021, pp. 469-470, com alterações.

Está sendo difícil para mim sair da cama. Muito. 

Acontece que, ontem, houve reunião em casa de amigos e, como fazia frio, bebi. Se não fizesse frio, beberia também, porque era “Dia do Papai”, consequentemente, meu dia, no que diz respeito, não só a Maria Rita e Antônio Filho, mas a todos os órfãos permanentes e temporários da vida. Bebi e, já que estava bebendo, dei cabo de uma garrafa.

Aqui está Antônio, na cama, sem a menor possibilidade de levantar-se, escrevendo estas notas por conta de suas obrigações com Assis Chateaubriand e João Calmon.

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O que é a ressaca?

Na maioria dos homens o dia seguinte de um pileque é dor de cabeça, boca amarga, pés inchados, etc. Em mim, nada dói. A ressaca é simplesmente um profundo estado de culpa. Todas as culpas caem sobre mim, desde as primeiras. Sinto-me culpado, por exemplo, de ter enfeiado o corpo de minha mãe, durante os meses em que fui gestado. De ter-lhe causado as dores das vésperas e a dor sublime de 17 de março de 1921.

Fui a criança que mais doeu na família. Pobre dona Diva! E continuei doendo. E “douo” ainda hoje, por viver tão exposto às mortes da vida.

Esperanças, Diva! Daqui para frente, embora não me sinta capaz de evitar-me os desvarios, evitarei, ao máximo, que eles lhe atinjam.

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Aqui estou eu, sem coragem para um só gesto. José Aparecido telefona e se queixa da minha influência nefasta em sua via pós-revolução. O que vem passando desde que me conheceu. Queixa-se, particularmente, de terrível encontro casual que, sem querer, lhe proporcionei.

Em dia de ressaca, aceito e assumo todas as culpas que me impõem. Sim, sou eu o culpado de todos os males, inclusive o tráfego de Copacabana, que só o cel. Fontenelle entende.

Dizem que as inovações do trânsito resultaram, esplendidamente, na cidade. Mas, aqui em Copacabana, coronel, tenha paciência. Por exemplo, a transformação da Tonelero em “mão única” sul-norte é um absurdo que se caracteriza todas as noites (entre sete e oito) quando se vai pela Barata Ribeiro, em direção ao posto seis.

A Barata Ribeiro, além de cortada por não sei quantas transversais, é uma rua-funil. Começa larga, vai estreitando e acaba estreitíssima. Não podia jamais ser “mão única”, pois ninguém impede que, já no posto cinco, as filas de quatro sejam reduzidas a apenas três automóveis. Aí começa o engarrafamento, com buzinaria, troca de pragas e palavrões, quando não acontece que, um motorista menos contido abusa, fisicamente, de outro. Os radiadores fervem, na Barata Ribeiro, entre sete e oito da noite. Os dos carros e os dos homens.

Enquanto isto, a Tonelero fica vazia, apesar daquele túnel, que foi feito para oferecer melhor acesso ao posto seis e a Ipanema.

Ah, coronel Fontenelle, vossa excelência deu grandes mancadas, nas inovações do trânsito-ZS. Daqui desta coluna, a menos lida do Brasil (uma das mais bem-intencionadas) eu o convido a rever os vários absurdos cometidos em Copacabana, principalmente, a bobagem que foi inutilizar o túnel da Tonelero, uma das mais úteis inaugurações do governo Carlos Lacerda.

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E continuo sem poder levantar-me. Sem querer, também. O homem de caráter é aquele que, mesmo podendo, não deseja levantar-se. Eu tenho muito caráter.

Hoje, irei encontrar uma moça clara. Pelo meu gosto não iria. Tenho medo dela e de mim, também. Tenho medo de tudo quanto é mulher... e de mim, também.

Sabe como é: no começo tudo são flores. Depois, a gente gosta, vêm os ciúmes... e adeus sossego.

Vou encontrar uma moça clara e com franqueza, preferia que ela fosse escura. Ou melhor: que ela não fosse.

Mas, ela irá, eu direi o de sempre e acontecerá o de sempre. Riso, amor e perdição. Rir, rir, rir! Pobre moça! Pobre Maria! Mas, que seja tudo por um Brasil melhor.

Edith, minha cozinheira e diretora espiritual, trouxe a oração mais eficaz da devoção a Santo Antônio. Chama-se “Cinco minutos diante de Santo Antônio” e começa nas disposições do meu padroeiro em relação a mim: “Sinto-me disposto a fazer tudo por ti, mas, filho, dize-me, uma a uma, todas as tuas necessidades.

Quero pouca coisa, meu padroeiro. Um pouquinho de dinheiro, para jantar com vinho, todas as noites, aqui no “Bistrô”. Coisa pouca. Uns 40 ou 50 contos, para jantar com vinho. Queria, ainda, que o Walter Clark não me tratasse tão mal, preterindo-me, acintosamente, por amor a Nelson Rodrigues. Acho que é só, Santo Antônio. Saúde para dona Diva e para meus filhos. Os outros, todos os outros, já têm quem reze por eles.

Ah, sim. Ia esquecendo. Vê se melhora o bico de papagaio do José Aparecido. Melhorar. Curar, não precisa. No mais, que me passe esta ressaca. E só, Santo Antônio. Até amanhã.

antonio-maria