O sábado é de lua e a noite está povoada de bêbedos. São duas coisas que se acasalam bem, lua e bêbedos, — melhor até do que lua e namorados, porque namorados, já sendo dois, com a lua fazem três, e três não é conta boa, três sempre é gente demais. Porém, lua e bêbedo, se comparam à mão e à luva, se entendem e se completam, constituem o par ideal, Romeu e Julieta, ela lá em cima no seu balcão azul, e o bêbedo cá de baixo, entre os ciprestes solitários, explicando amores e cantando os seus madrigais.

Mas nem todos, nem todos; nem todos os bêbedos cantam madrigais. Há deles que são gregários e demagógicos, que precisam de público e do calor de uma convivência ampla. Como o que vinha no bonde, com um casacão de marujo e carapuça de crochê, e tentava falar com o condutor num inglês do cais do porto, inglês de embarcadiço, mas inglês, evidentemente. E o português de poucas letras só se interessava pelo tostão da passagem, e atrevia-se até a zombar, dizendo que aquilo era só língua trocada não era inglês coisa nenhuma. Aí o bêbedo ficou desesperado, pôs-se em pé no banco e apelou para o testemunho de todos os nobres passageiros daquele bonde. Dissessem, dissessem, ele não estava se exprimindo no mais puro inglês de americano, que se fala em New York, em Barbados e em Nova Orleans! Mas ninguém lhe confirmava a afirmativa, e ele não se conformava com tanta ignorância ou com tantos corações duros: “Senhoras e cavalheiros! Será possível que nenhum dos presentes fale inglês? Ladies and gentlemen! Do you speak English”?

No botequim justo da amendoeira grande há outros quatro bêbedos reunidos, tomando cerveja preta. Um deles chora, porém, o mais gordo de todos, que está de camisa de meia, levanta copo no ar e puxa o coro daquela cantiga de beber, tão antiga e tão bonita:

“Oh, que belos companheiros! 
Como viram tão ligeiros! 
Se és covarde, saia da mesa, 
Que a nossa empresa requer valor! 
Primeira companhia, vira, vira, vira, 
Vira, vira, vira”...

Mas no outro botequim que fica daí a cem metros está reunido um grupo de cinco, que resolveu se embebedar com quinado de alcatrão; estão todos num vinho tristíssimo e impertinente; e acabaram indo para o distrito porque naquela amargura sem fim um deles decidiu-se a quebrar a garrafa na cabeça do outro — talvez por nada, só para ver a cor do sangue, que sendo vermelho é alegre. E depois quebraram-se outras garrafas, mais sangue alegre correu e ficou muito divertido enquanto não chegaram os guardas. Guarda sempre estraga alegria. Por isso ninguém aprecia guarda.

E por falar em distrito, também nesse sábado não faltou aquele bêbedo que nem gosta tanto de beber, e até anda com mal do fígado; mas só bebe porque está no seu direito e se ele não beber noite de sábado, afinal em que é que vai se ocupar essa polícia? A gente precisa não se esquecer de que é um cidadão brasileiro.

E agora, por falar em cidadão, também há os bêbedos políticos que se dividem em cívicos e revolucionários, — uns dão vivas ao presidente e ao prefeito, outros ao Senador Luís Carlos Prestes; alguns, mais fora da moda, festejam Getúlio Vargas e fazem brindes aos retratos que ainda restam teimosamente pelas paredes, como marca de ferida em canela de moça feia. Às vezes essas paixões rivais se engalfinham, — porém nunca mais se escutou viva ao Brigadeiro, que anda hoje em dia em berço esplêndido, esquecendo e sendo esquecido.

E há o vivo, que é um problema psicológico, pois ninguém sabe se chora e bebe por que não pode com as saudades da defunta ou se bebe e chora porque a defunta não pode mais com ele.

E há o bêbedo lírico, com mania de fazer serenata; mas não tem voz nem violão e vai ganir à porta da amada, em desafio com o rádio onde soluça Orlando Silva com orquestra regional.

E por fim há o bêbedo suicida, que já quis se matar onze vezes, mas se embriaga tão depressa que quando se lembra de morrer não acha nunca a farmácia aberta para comprar o formicida. Desta vez, contudo, teve sorte, e conseguiu tomar quatro dedos da garrafa de água sanitária que uma freguesa deixara no balcão do armazém; mostrou assim a boa intenção, foi levado até à Assistência e sofreu lavagem de estômago. Também agora ninguém mais pode dizer que ele é suicida de fita: só não morreu porque acudiram a tempo. E pode beber em paz, com a consciência descansada: é pobre de pé no chão, mas cumpre com a sua palavra.

rachel-de-queiroz
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