Fonte: Alhos e bugalhos, Civilização Brasileira, 2001, pp. 215-216. Publicada,anteriormente, no livro Hora do Recreio, de 1967.

É antes de tudo forte e fraco. Porque há dois tipos de bebedores: o pau-d'água e o bom-copo.

O pau-d'água não tem hora para beber. Acorda com sede e a mitiga imediatamente com a talagada, que é o início de uma série infindável. Ou que finda com a morte na sarjeta, a cirrose, o delirium tremens. A vida é risonha ao pau-d'água. Trata-se do homem que tem um programa e o realiza. 

Já a vida do bom-copo é uma luta. O pau-d'água é um ser solitário; o bom-copo é eminentemente um ser rodeado de amigos. De amigos e simpatizantes que acabam por cavar o seu drama inumerável.

O bom-copo é uma espécie de sujeito que tem um violão: não há festa na cidade na qual se possa esquecer o homem do violão. O homem do violão é forçado a comparecer a todas as comemorações locais, aniversários, batizados, casamentos, tudo. Na segunda cerveja tomada por um grupo no botequim ou em casa, alguém se lembra do homem do violão, uma instituição municipal. Ah, ele tem de tocar, sorrir, cantar, repetir, ficar.

O violão do bom-copo é o próprio copo ― seu alaúde. Não há também festa sem que sua presença não seja considerada indispensável. Margarida vai dar uma feijoada no sábado: o primeiro nome lembrado é o do bom-copo. Vatapá na casa de Castelinho: Castelinho, que mal o conhece, intima o bom-copo a comparecer sem falta. Linguiça frita à meia-noite na casa do Lula! Lula vai buscar o bom-copo de automóvel. Pândegos que vão comer ostras e beber vinho branco na Barra da Tijuca passam antes pela casa do bom-copo às cinco em ponto da madrugada.

A sua tragédia é que ninguém, absolutamente ninguém, sequer pode imaginar uma recusa de sua parte. A qualquer hora do dia ou da noite, em qualquer circunstância, o bom-copo tem de cumprir o seu dever: comparecer, encher o copo, esvaziá-lo, tornar a enchê-lo, encher-se.

Não se admite nele a mínima pretensão a um descanso. O franco-atirador, isto é, o indivíduo que bebe uma vez ou outra, julga-se no pleno direito de pegar o bom-copo pelo braço, em hora de expediente, e ir arrastando-o até o bar: "Hoje estou chateado, velho. Vamos tomar um pileque."

A convicção de quem faz a importuna intimação é tão implacável que o bom-copo nessas ocasiões não vacila um segundo: deixa trabalho, esposa, filhos e vai acompanhar o outro. Não por gosto, mas por um misterioso compromisso que foi se criando entre ele e a sociedade que o cerca.

Outro drama do bom-copo é que ele não pode parar ou retirar-se mais cedo. Sua indeclinável obrigação é sair do campo de batalha somente depois que o último soldado manifesta a sua vontade de dormir ou de dar uma esticada. No último caso, o bom-copo também tem de esticar. Não há jeito. Seu dever é beber. E nem mesmo lhe resta o consolo de empilecar-se, folgar, brincar. Porque aí ele deixa de ser um bom-copo.

Eu, hein! 

paulo-mendes-campos