Campanha publicitária da agência Itapetininga para o perfume Imprévu da Coty, São Paulo-SP, 11/10/1966. Foto de Chico Albuquerque. Coleção Chico Albuquerque/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Amor realizado é com certeza o que há de bom, mas – desculpe se desafino o coro dos felizes – nem sempre dá literatura boa. Ou você acha que Shakespeare teria perdido o tempo dele contando uma história de Romeu e Julieta com happy end? Teria, quem sabe, se limitado a registrar o fogaréu inicial de uma paixão – como fez, mais perto de nós no tempo e no espaço, o cronista e poeta Paulo Mendes Campos, ao falar do casal que em plena tarde, numa cidadezinha, faz crescente a sua lua de mel, enquanto o mundo lá fora gira prosaico em outra direção.
Levemos adiante a provocação. José Carlos Oliveira não teria escrito Entre aspas se tivesse juntado os panos com aquela que julgava ser a mulher de sua vida, “extremamente sofrida, viajada, culta e de certo modo sinistra”. Como assim, sinistra? Sim: ei-la de repente, anos depois, a encará-lo de dentro de um carro parado num sinal, olhando-o “como só a mulher que ama sabe olhar”, até que o trânsito se ponha novamente em marcha, selando um adeus para nunca mais.
O mesmo Carlinhos Oliveira, em A bossa da conquista, até nos dá a impressão de ser um mestre na galanteria, ao recomendar a outros machos que bombardeiem “sua vítima, ou futuro troféu, com toneladas de rosas e uma infinidade de ultimatos”. O tom professoral, porém, se evapora poucas linhas adiante, quando ele chama o conquistador, que talvez seja ele mesmo, de “bobo”, por haver imaginado “ser um caçador” quando na verdade “não passava de uma atraente caça”. Conselho realista ele tem apenas um, este: “Case-se o mais depressa possível, pois duas coisas são aborrecidas quando demoram: o noivado e o ônibus”. Numa canção do noivo, já que estamos no assunto, Carlinhos se reconhecerá culpado por haver traído a mulher desconhecida que espera por ele em algum lugar igualmente não sabido. O objeto do adultério? A sua própria liberdade, confessa ele, essa “fêmea angustiada” que “nunca dorme com o homem que a ama”.
Antônio Maria é outro que julga ter recomendações e curativos de amor a prodigalizar. O marido abandona a mulher que se enrabichou por um rapaz que mora em frente, e ao saber disso o moço, temeroso de represálias, cai fora também. Consultado, o Maria receita à desolada adúltera um mês de “hibernoterapia”. E não é que dá certo? Marido e amante retornam aos antigos postos e funções, numa comprovação de que temos ali uma história que não acaba. Em coração opresso, coração leve, o cronista tem remédio para males de amor em geral, esses “cuja sintomatologia está contida em obras de Lupicínio Rodrigues, Charles Aznavour, Herivelto Martins, Marguerite Monnot e Maísa”. Num primeiro momento, deve o enfermo de amor ser levado à presença de uma cartomante, “sempre que possível egípcia”. Em seguida a uma sessão de “cartomancioterapia”, corpo e alma serão conduzidos – mas atenção: jamais na mesma ambulância – ao Serviço Nacional de Mal de Amor, após o que, restabelecidos e reintegrados, poderão os dois dividir um táxi.
Quanto a Rachel de Queiroz, se tinha conselhos a dar num hipotético consultório sentimental, teve a prudência de silenciar em seus escritos. Em vez disso, contou que certa vez, ao ligar o rádio, topou com um concurso cujo desafio era definir o amor. Em vez de entrar ela mesma na disputa, Rachel decide fazer pesquisa própria, e nisso recolhe opiniões bastantes para rechear uma crônica. Entre elas, a de um padre, sim, de um sacerdote, o qual, perguntado por que não se casa, já que tanto louva e abençoa o amor entre filhos e filhas do Senhor, se sai com esta: na condição de religioso, devotado à santa Igreja em regime de exclusividade, se subisse ao altar pelo lado dos fiéis ele estaria incorrendo em bigamia.
A prudência de Rachel não impediu que ao contar uma história, por sinal bonita, ela repicasse três vezes a palavra: amor, amor, amor. Mais contido, como se sabe, seu confrade Rubem Braga se bastou com dose dupla em Amor, amor – ainda que, abrasado pelo sentimento que lhe provocava Joana, amada sem retribuição, ele se confesse capaz de tudo, como de resto deixa claro o verso de Drummond (não creditado) já na primeira linha: Amor, a quanto me obrigas.
Numa comprovação, quem sabe, da polêmica tese (a provocação, vamos assumir de vez) de que amor feliz não rende boa literatura, bem raras vezes Rubem Braga contou histórias de Romeus e Julietas vivendo juntos para sempre, se é que ele o fez um dia. O amor realizado, em seus escritos, está distante como aquele casal que ele vê ternamente engalfinhado numa calçada, impermeável à chuva que não cessa de cair sobre os dois. Numa mesa de bar, em outra crônica, o Braga não abre o bico para palpitar enquanto ouve o relato torrencial de um amigo que está apaixonado, com direito a todas as benesses e agonias, emboladas, que um incêndio de amor pode atear – e do qual faíscas vão sobrar também para o silencioso e paciente ouvinte. Algo como a inesperada recaída amorosa que ele haverá de experimentar em A praça, quando, à maneira do vulcão ressuscitado de Jacques Brel em Ne me quitte pas, acender-se nele novamente um amor que dava por extinto. Se a coisa dessa vez andou, deve ter sido nos limites temporais do verso de Vinicius, infinita enquanto durou, pois não há notícia de que o Velho Braga e mais alguém, fosse quem fosse, tenham vivido felizes para sempre.