Periódico
Correio da Manhã

Publicada, posteriormente, em Manchete, de 20/04/1957, com o título "Os amantes e a praça", e Manchete, de 2/03/1963, com  o título "Praça trêmula de lembranças". 

Ouça a crônica de Rubem Braga na voz da pesquisadora Elizama Almeida.

Eu ia distraído, a pé, com um amigo, e quando desembocamos na praça senti um choque íntimo, fiquei um instante imóvel, a olhar, com surpresa de minha própria emoção. Depois daquele tempo eu já passara algumas vezes pela praça, mas não sentira essa impressão estranha, forte e absurda de estar repetindo um momento vivido. Sob um céu azul a praça estralejava de seus banais rumores ― vozes, um bonde que partira roncando com suas ferragens, os motores dos carros. Um automóvel de luxo passou rápido, buzinando alto sua riqueza, uma velha pobre com uma criança na mão se detinha no meio-fio, com medo de atravessar, um sujeito saía da farmácia, operários davam gargalhadas no bar.

Aberta em quatro lados, a praça absorvia e expelia gente e veículos com seu ritmo das quinze horas, mas tudo, a banca de jornais, o capotinho vermelho da menina loura que brilhava tanto ao sol, tudo repetia o instante de outros anos, com uma verdade lancinante ― e havia um homem dentro de um café, na mesa mais do fundo, que bebia alguma coisa vigiando sempre uma esquina distante.

Olhei. E aquela que era esperada ― eu tinha certeza, apareceu com uma blusa colorida e uma saia cinzenta, andando com uma espécie de firmeza musical sobre seus saltos altos. Funcionavam bem suas pernas longas, queimadas de sol, e ela estava tão limpa e tão elegante na calçada clara! De longe o homem do fundo do café adivinhava seu perfume leve. Já havia pago a despesa, ergueu-se ― era uma loucura marcar um encontro ali, dissera ela mais de uma vez, mas os dois repetiam essa loucura sem necessidade, talvez o homem da farmácia, o chofer do táxi, já tivessem notado, a praça tinha muitos perigos, tinha muitos olhos em volta e nas suas quatro ruas. Quem a visse andar assim, firme, sem jamais olhar de lado, o queixo um pouco erguido, e tão alta e digna que os operários da construção não ousavam dizer nada quando ela passava perto, apenas assobiavam quando já ia mais longe; ― quem a visse assim tão linda e certa de si mesma, tão jovem senhora (dois riscos brancos na canela da perna morena tinham sido feitos pelas unhazinhas da menina, que adorava riscar assim o corpo queimado de sua mãe) não imaginaria seu sobressalto, a leve angústia que a possuía naquele instante, e que a fazia tratar aquele homem que amava com uma espécie de secura, uma obscura raiva de amante ― só algum tempo depois de juntos ela se deixava entregar à própria ternura e à dele.

Seria absurdo dizer que ela amava seu marido, então como explicar que aquilo podia acontecer? E na praça ia outra gente com outras coisas na cabeça, talvez naquele mesmo instante dois malandros ali estivessem marcando um encontro para um assalto, outros destinos estivessem se mudando devido a um encontro, uma palavra, alguém tomava de súbito certa decisão, sentia-se que as coisas estavam acontecendo na praça, até o homem de paletó de pijama com uma cesta cheia de frutos era permitido supor que naquele momento lhe tivesse ocorrido alguma coisa definitiva.

Como um inútil espião vi e mostrei ao meu amigo os dois amantes que se encontravam como por acaso; eu morara, vivera, tremera naquela praça, lembrei-me de mim mesmo em momentos assim; com ódio e derrota na alma, também com o coração cantando, aqui fui pária, namorei rodas de bonde para suicídio, aqui fui imperador feliz do reino mais belo, aqui, nesta praça junto do morro, com ruas que sobem e descem, aqui meus nervos vibraram e agora novamente vibram, porque alguma coisa, o ângulo da luz, o passo da mulher, o capotinho da criança, me devolveu completa a tardinha de dez anos atrás, tão viva e trêmula sobre o asfalto da praça, sobre os carros, e a inquieta gente.

rubem-braga
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