Batizou-se por Olindina e muita gente a chama assim ― Dona Olindina. Mas quem quer ser íntimo, trata-a de Linda. Nome mal empregado, pois linda poderia ela ser se tivesse uns vinte anos a menos e uns vinte dentes a mais. São as tais injustiças dos nomes.

Servindo desde criança, tem entretanto dentro do peito uma coisa a lhe dizer que não nasceu para servir. Pois cor não obriga ninguém a ser cativo, já se passou o tempo. Diz que na Bahia tem tanto negro doutor, tanta crioula rasgando cetim ― e para contrariar ainda botam como empregada essas gringas de cabelo amarelo; os negros sentados na mesa, comendo galinha, e a branca de avental, correndo do fogão para a copa. Mesmo aqui, no Rio já se vê um pouco dessas coisas. A questão é sorte ― boas amizades, capricho no viver. O finado marido de Linda, por exemplo, era homem que nunca seria nada: e olhe que a cor não o atrasava. Na carteira de identidade dele estava escrito “pardo”, porque esse pessoal da polícia não liga a ofender os outros; na verdade era ele moreno do cabelo crespo, mais claro que muito mocinho rico que anda tomando banho de mar. Portanto, não tinha que se queixar da cor. Mas deu para andar em más companhias, inventou de ser jogador de futebol e nem para isso dava: só fazia de reserva em time fuleiro, desses que não fazem parte da CBD. Depois meteu-se com uma crioulinha sem-vergonha, lá para as bandas de Madureira. Esqueceu que tinha mulher e filha, que era casado no padre e no civil, esqueceu de que quem jura é obrigado. Talvez por isso teve mau fim e acabou no hospital, com doença no juízo. E a descarada da crioula ainda teve o topete de dizer que “aquela negra mulher dele é que tinha botado coisa feita no pobre do Joãozinho”. Isso doeu a Linda mais do que tudo; tanta paciência que teve, até os sogros reconheceram e ajudaram; e vem agora aquela coisa à toa, levantar semelhante falso. Coisa feita que matou ele foi a pouca vergonha dos dois, isso sim.

Viúva, Linda foi melhorando de vida. Conseguiu comprar, a prestação, uma garra de terreno, morro acima, e mandou fazer um barraco; botou a filha praticando de costureira e ela própria se empregou para cozinhar numa pensão de veranistas. Mas a pequena tinha mania de fazer extravagância, levar sereno com a cabeça descoberta, andar com pé no chão frio, chegou a inventar banho de sol na praia com as colegas do ateliê. E tomar sorvete com o corpo quente quando saía do cinema, imagine. Aí pegou com umas gripes, deu-lhe uma fraqueza no peito. Pra que contar mais? [...] da conta do médico, até injeção de ouro pagou. Mas qual. Com seis meses enterrou-se a menina.

Foi um dos pedaços mais duros que Linda já atravessou. Felizmente a maldade dos patrões foi que a distraiu um pouco do seu estupor. Nem esperaram pela missa do sétimo dia; no dia seguinte ao enterro mandaram dizer que se não voltasse logo ao trabalho tinha outra que desejava o lugar. Ela voltou, pois tinha de pagar as contas penduradas por toda parte: açougue, venda, farmácia. Mas assim que se livrou do peso maior, largou a pensão e foi arrumar por hora num prédio de apartamentos que fizeram agora nas Pitangueiras.

E aí tornou a aparecer o amor na vida de Linda. O mundo é muito ruim, mas tem dessas compensações. Quando a gente pensa que tudo afundou, e só dá na vontade sentar no chão e esperar pela morte, é então que nos surge uma esperança. Linda começou a amar e, ou seja verdade pura, ou seja ilusão dos seus olhos, Linda começou também a ser amada. Desta vez não foi mais um mulato traiçoeiro e fujão. “Seu” Luís, o novo amado, é um negro tão alto que parece uma torre preta; ainda é novo, manso de gênio, manso de fala e, mal comparando, até parece um desses negros de cinema quando veste o paletó e se arruma para sair. Também é viúvo, se bem que não tenha sido casado direito. Viveu com uma moça que lhe deixou três filhos e explica que não casou com ela porque nunca lhe deveu nada. O que “seu” Luís viu em Linda não se sabe. O barraco? O bom ordenado? Realmente ele é homem da folga, pouco amigo de castigar o corpo. E bebe o seu bom tanto; às vezes tem de cair dormindo em qualquer parte, ― até na beira do cais, com risco de rolar dentro da maré. Tudo isso Linda lhe perdoa e até acha graça. “Quem bebe, dorme” diz ela ― “e quem dorme sossega”. O choque que há entre ambos é outro ― é o choque de duas tradições. Ela já foi casada e ele jamais casou. Na segunda união cada um quer seguir o exemplo da primeira; ela diz que com ele só vai casando e ele pergunta para que pobre quer casamento? Ainda mais sendo viúva, que tem ela a perder?

Nesse impasse andam. Amaziar ― já Linda explicou dez vezes: amaziar não amazeia. Casada saiu a primeira vez, casada sairá a segunda. Ele ― será de malandragem que se apega a isso, para ir tenteando sem assumir responsabilidades? Pode ser que nem goste dela, fique só naquele paleio pode ser que tenha outra, alguma dessas crioulas de corpo de violão, como há tantas por cá. E Linda é aquela tábua lisa, quarentona, com o cabelo já todo empoeirado de branco, sem falar na falta dos dentes.

Mas agora ela resolveu mandar pôr dentadura, ― e sendo que terá uma ponte, com um ou dois dentes de ouro. Já faz uns três meses que economiza e põe dinheiro na Caixa Econômica, para a entrada do dentista. Com o esplendor do ouro na boca, Linda espera deslumbrar o arisco. E em verdade, em verdade, que não pode o ouro neste mundo?

rachel-de-queiroz
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