Arcos da Lapa, Lapa, Rio de Janeiro-RJ, 1969. Foto de Maureen Bisilliat. Arquivo/Coleção Maureen Bisilliat/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Se ainda estivesse entre nós, e é uma pena que há muito não esteja, o mineiro Otto Lara Resende não deixaria passar em branco, neste 1º de março, os 456 anos de fundação do Rio de Janeiro, a cidade onde viveu desde os primeiros dias de 1946. Atento também aos números, não é impossível que ele então brincasse com a promissora sequência 4-5-6. O certo é que não deixaria de registrar a efeméride. Foi assim em 12 de outubro de 1991, quando registrou em “O papa e a gente” os 60 anos de presença do Cristo Redentor no topo de uma das esplêndidas corcovas da paisagem carioca. Na mesma crônica, como bonus track, Otto lembrou também deliciosas “descobertas” da filha Cristiana em mais de um 12 de outubro de sua infância.
Não lhe escapou tampouco, em 1992, o que de certo modo poderia ser considerado o centenário de Copacabana: “Mudamos e não mudamos” fala da inauguração do primeiro túnel (que na boca do povo acabaria virando “túnel velho”) a ligar a cidade àquela então desértica vastidão de areia. Já em "Entre lobo e cão", o cronista não precisou de efeméride alguma para deslumbrar-se ante o que via: “Com o tempo feio, puxa vida, como o Rio é lindo!”
Paulo Mendes Campos, também ele mineiro e carioca praticante, foi outro forasteiro a cair de amores pelas inumeráveis joias do Rio de Janeiro. Entre elas, o Maracanã. “Se há coisa que me emociona...”, escreveu ele, “é um sujeito jogar bem futebol”. Embora botafoguense, numa tarde de janeiro de 1953 Paulo deixou cair o queixo na contemplação das artes de um craque de outro clube, o grande Zizinho, com “a malemolência de suas fintas, seus passes perfeitos, sua plasticidade”. Só faltou contar que o legendário meia, veterano da Seleção de 1950, contribuiu então com dois gols para a vitória do Bangu por 3 a 2, liquidando as esperanças do Fluminense de levar o título de 1952, que seria do Flamengo.
A felicidade no pós-jogo estimulou o cronista a espichar a tarde – e lá foi ele, de carro, com os amigos Millôr Fernandes e Hélio Pellegrino, subúrbio adentro, num mergulho em que a poesia, aos poucos, deu lugar à tristeza da miséria urbana. Asperezas de que Paulo falará também em “E a cidade que se chamava...", relato apocalíptico em 19 parágrafos numerados, dos quais ao menos um dá ao leitor de hoje a impressão de ter sido escrito não em 1951, mas em dias recentes: “Como o látego no lombo do burro, Rio de Janeiro foi castigada duramente; e os vícios dos homens públicos é que foram causa dessas aflições”.
Solitário carioca em nosso time de cronistas, Lima Barreto não se cansou de denunciar o que considerava agressões a sua cidade. Em 1911, reagiu mal à notícia de que “O convento”, erguido em meados do século 18, seria limado da paisagem. Não que morresse de amores pelo casarão; o que o revoltava era o silêncio unânime ante da demolição anunciada. Não se tratava de um imóvel qualquer, lembrou: um convento de freiras está carregado de memórias, ainda que tristes, pois era ali que autoritários chefes de família enfurnavam filhas e parentas fora do padrão, como forma de apartá-las das tentações do mundo.
Três anos mais tarde, em “A derrubada”, Lima Barreto preferiu não entrar no debate sobre se deveriam ou não ser retiradas as grades do Passeio Público – o primeiro parque ajardinado do Brasil, inaugurado em 1783. Mas voltou a condenar o silêncio dos cariocas em face do sacrifício, em vários pontos da cidade, de “árvores velhas, vetustas fruteiras, plantadas há meio século”. Em “O Jardim Botânico e suas palmeiras”, investiu contra o “espírito frívolo” da “mais inepta das burguesias”, uma gente que “não tem gosto, não tem arte, não possui o mais elementar sentimento da natureza”. As “construções ultramodernas e ultrachiques são hediondas”, fulmina ele, ao mesmo tempo em que deplora a adoção do tijolo onde antes imperava o tradicional granito do Rio. Não era só. “Com as suas palmeiras hieráticas” e “seus bambus em ogiva”, o Jardim Botânico, mandado fazer por D. João VI em 1808, “está abandonado”. E “as crônicas elegantes das praias”, naquele ano de 1919, “não têm uma palavra de saudade para aquele canto do Rio”.
Coisa pior está por vir em 1922, quando o prefeito Carlos Sampaio demolir o Morro do Castelo – e, com ele, protestou o Lima em “Relíquias, ossos e colchões”, a Igreja de São Sebastião dos Frades Capuchinhos, construção de 1567 na qual se achavam conservados, além do marco zero da cidade, os ossos de seu fundador, Estácio de Sá. O cronista, a quem não restava então um ano de vida, não chegará a conhecer o novo endereço daquelas relíquias, a nova igreja dos capuchinhos, inaugurada na Tijuca em 1937.
Ao contrário de Lima Barreto, Rachel de Queiroz não se opunha a intervenções humanas na paisagem carioca – no caso, pelo menos, da construção de aterros em franjas da Zona Sul, com terra e pedras do Morro de Santo Antônio, no centro da cidade, roído pelas máquinas em meados da década de 1950. “Se alguma coisa temos demais neste país”, disse Rachel em “Esplanada da Glória”, “é paisagem.”
Instalada no Rio desde 1933, quinze anos depois a escritora cearense traçou em “Cidade Maravilhosa” uma espécie de enredo padrão vivido por brasileiros que lá chegavam, transplantados de outros cantos do país. Trajeto que vai do “choque e a decepção” iniciais a uma progressiva rendição aos encantos do Rio, até que o imigrado “vira carioca”. Mas o que vem a ser isso? “O carioca puro-sangue”, acredita Rachel, “só é puro zootecnicamente, pois na verdade ele é dois oitavos baiano, cearense e pernambucano, um oitavo mineiro, outro oitavo sírio-libanês, dois oitavos fluminense e os dois restantes de origem indiscriminada...”
Boa ilustração do que diz Rachel de Queiroz seria o capixaba Rubem Braga, que em “Lembranças”, recém-entrado nos 40 anos, rememora sua juventude no Rio, quando tinha os bolsos cronicamente desabastecidos. Nem por isso era infeliz: “Se o pobre tem aqui uma vida muito dura, e cada vez mais dura, ele sempre encontra um momento de carinho e de prazer na alma desta cidade, que é nobre e grande sobretudo pelo que tem de leviana e gratuita, inconsequente e sentimental”. Ano e pouco mais tarde, numa tarde de sábado, o Braga dá por si numa confeitaria na “Cinelândia”, e, sem haver premeditado, pede ao garçom exatamente aquele luxo – waffles com mel –que na juventude punha a perder suas finanças, e que no seu caso dá a impressão de funcionar como a madeleine de Marcel Proust, bolinho capaz de escancarar os mais recônditos baús da memória.
E há o pernambucano Antônio Maria, que num belo (literalmente) dia percorre com certa moça os “redondos, inacabáveis” caminhos da Floresta da Tijuca, os quais, na sua avaliação, nem são caminhos, “são pretextos”. A felicidade é tanta que “Alto da Boavista & Floresta” deixa ver o cronista invadido por uma “vontade de morar uns anos por aqui, sem sair daqui, e, com o tempo, ficar um pouco vegetal”. E nem se trata, para ele, do lugar “mais bonito em toda esta cidade”, culminância que em seu coração é ocupada pela lagoa Rodrigo de Freitas, capaz de fazer bem tanto aos pobres como as ricos que vivem ao seu redor. “Só a beleza nivela os homens economicamente desnivelados”, filosofa o cronista em “A lagoa”. Pena que o objeto de sua admiração carregue a praga eterna de volta e meia cheirar mal – “como uma bela mulher que sofre de mau hálito”, compara. Fazer o quê? “Se Deus fosse menos rancoroso, receitaria um remédio de bochechar para o hálito da lagoa.”