Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I. p.98. Publicada, originalmente, no jornal [Gazeta da Tarde], de 21/07/1911 e, posteriormente, no livro Bagatelas. Brasiliense, 1956, p.93. 

Noticiaram os jornais, com pompa de fotogravuras e alarde de sabenças históricas, que o Convento da Ajuda, aquele ali da Avenida, fora vendido a alguns ingleses e americanos pela bela quantia de mil oitocentos e cinquenta contos.

Houve grande contentamento nos arraiais dos estetas urbanos por tal fato. Vai-se o mostrengo, diziam eles: e ali, naquele canto, tão cheio de bonitos prédios, vão erguer um grande edifício, moderno, para hotel, com dez andares.

 Eu sorri de tão santa crença, porque, se o Convento da Ajuda não é tão bonito como o Teatro Municipal, tanto um como outro não são belos. A beleza não se realizou em nenhum dos tais edifícios daquele funil elegante; e se deixo o Teatro Municipal, e olho o Club Militar, a monstruosa Biblioteca, a Escola de Belas-Artes, penso de mim para mim que eles são bonitos de fato, mas um bonito de nosso tempo, como o convento o foi dos meados do nosso século XVIII.

Naquele tempo, isto é, entre 1748 e 1750, quando ele ficou mais ou menos pronto, se já houvesse jornais, certamente eles falariam no lindo e importante edifício com que ficou dotada a leal e heróica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Falariam com o mesmo entusiasmo com que nós falamos ao se inaugurar o teatro do doutor Passinhos. Não os havia e não podemos passar de suposições. Decorreram cento e cinquenta anos e nós ficamos aborrecidos com o tal lindo edifício.

O bonito envelhece, e bem depressa; e eu creio que, daqui a cem anos, os estetas urbanos reclamarão a demolição do Teatro Municipal com o mesmo afã com que os meus contemporâneos reclamaram a do convento.

É de ver como os homens tidos por mais carranças, mais tradicionalistas, mais misoneístas, não apresentaram já não direi protesto, mas queixumes contra essa mutilação que vai sofrer a cidade. Nenhum deles se enterneceu com a próxima morte daquelas paredes; e havia tanto motivo para isso! Um convento de freiras é de alguma forma quinto ato de dramas amorosos.

Certas vezes serviram de prisão doméstica, prisão às ordens desse juiz-algoz, o pai de família, sempre obediente aos vagos códigos da honra e da pureza da família, metendo as filhas e parentas nos conventos, quando implicava com o namorado que tinham, ou não o julgava de nobreza suficiente para a sua prosápia.

Em outras, havia de ser voluntária a reclusão; mas, num pequenino cérebro de mulher, naturalmente esse piedoso desejo vinha de uma decepção amorosa ou de uma forte crença na indigência de sua beleza. O amor de Deus vinha após o amor dos homens; e aquelas paredes que vão ruir sob os aplausos dos estetas e anticlericais, longe talvez de estarem impregnadas de sonhos místicos, estão, talvez, saturadas de decepções, de desilusões, de melancolias e desesperos, posso bem dizer, de revoltas bem humanas.

Com as minhas ideias particulares posso passar sem o passado e sem a tradição; mas os outros, aqueles que, diariamente, contam nos jornais histórias do açougue dos jesuítas, anedotas do Príncipe Natruza e outras coisas edificantes e épicas, como é que deixam desaparecer sem uma lágrima, debaixo do alvião bárbaro, aquele velho monumento, panteão de rainhas, de imperatrizes e princesas?

É que eles estavam convencidos da sua fealdade, da necessidade do seu desaparecimento, para que o Rio se aproximasse mais de Buenos Aires.

A capital da Argentina não nos deixa dormir. Há conventos de fachada lisa e monótona nas suas avenidas? Não. Então esse casarão deve ir abaixo.

O Passos quis; o Frontin também; mas a desapropriação custaria muito e recuaram.

Não sei bem que vantagens trará tal coisa. Se, ao menos, fôssemos levantar ali um Louvre, um Palácio dos Doges, alguma coisa de belo e grandioso arquitetonicamente, era de justificar todo esse contentamento que vai pelas almas dos estetas; mas, para substituí-lo por um hediondo edifício americano, enorme, pretensioso e pífio, o embelezamento da cidade não será grande e a satisfação dos nossos olhos não há de ser de natureza altamente artística. Uma coisa vale a outra.

Não é que eu tenha grande admiração pelo velho casarão; mas é que também não tenho grande admiração nem pelo estilo, nem pela gente, nem pelos preceitos americanos dos Estados Unidos.

Em matéria de imenso, lá estão as pirâmides do Egito; e, como são simples de linhas e de destino, ainda podem ter alguma beleza; mas uma casa, uma habitação, com centenas de metros de altura, com uma fachada de superfície imensa, de forma que não se pode abranger de um golpe de vista o conjunto e o movimento dos detalhes, não é só monstruoso, é besta e imbecil.

O convento não tinha beleza alguma, mas era honesto; o tal hotel não terá também beleza alguma e será desonesto, no seu intuito de surripiar a falta de beleza com as suas proporções mastodônticas.

De resto, não se pode compreender uma cidade sem esses marcos de sua vida anterior, sem esses anais de pedra que contam a sua história.

Repito: não gosto do passado. Não é pelo passado em si; é pelo veneno que ele deposita em forma de preconceitos, de regras, de prejulgamentos nos nossos sentimentos.

Ainda são a crueldade e o autoritarismo romanos que ditam inconscientemente as nossas leis; ainda é a imbecil honra dos bandidos feudais, barões, duques, marqueses, que determina a nossa taxinomia social, as nossas relações de família e de sexo para sexo; ainda são as coisas de fazenda, com senzalas, sinhás-moças e mucamas, que regulam as ideias da nossa diplomacia; ainda é, portanto, o passado, daqui, dali, dacolá, que governa, não direi as ideias, mas os nossos sentimentos. É por isso que eu não gosto do passado; mas isso é pessoal, individual. Quando, entretanto, eu me faço cidadão da minha cidade, não posso deixar de querer de pé os atestados de sua vida anterior, as suas igrejas feias e os seus conventos hediondos.

Esse furor demolidor vem dos forasteiros, dos adventícios, que querem um Rio-Paris barato ou mesmo Buenos Aires de tostão.

O aspecto anticlerical com que eles escondem esse desejo de fazer da cidade um improviso catita nada vale. Em geral, são sempre os monumentos religiosos que ficam. O Partenon era um edifício religioso; e religiosos eram os monumentos de Carnac.

As catedrais góticas irão abaixo quando o catolicismo não tiver mais nem um adepto? Não. A não ser que os velhos turcos venham a conquistar a Europa inteira.

O convento por si só não enfeava tanto a cidade, como dizem; nem tampouco a sua demolição vai diminuir o espírito religioso, nem trazer para as alegrias da vida as freiras que lá estavam enclausuradas. Demais, não eram muitas; uma meia dúzia e o seu livramento pode ser obtido com a décima parte do dinheiro por que venderam o imóvel. É só requerer habeas-corpus...

De todas as instituições religiosas, uma das mais sábias é o convento. Nos antigos tempos, e um pouco no nosso, em que a vida social era baseada na luta e na violência, devia haver naturezas delicadas que quisessem fugir a tais processos; e o único meio de fugir era o convento.

Era útil e consequente; e se hoje o gosto por tais reclusões diminui, é porque já na nossa vida há mais tolerância, menos exibições de virtude e de força, menos tiranias domésticas, religiosas e governamentais.

Não há de ser diminuindo conventos com auxílio do alvião dos americanos que teremos a felicidade sobre a Terra. Eles podem ficar, como coisas de museu – ao lado de canhões, de obuses, de fichas de identificação policial, dos códigos forenses, de todo esse aparelho de coação inútil, quase sempre, e contraproducente, nas mais das vezes; o que, porém, precisamos fazer é desentupir a nossa inteligência de umas tantas crenças nefastas, que pesam sobre ela como castigos atrozes do destino.

Os conventos são mudos; mas essas falam. São como os tais mortos que falam, piores do que espectros, do que fantasmas e almas do outro mundo, porque não só metem medo às crianças e às mulheres, mas também aos homens cheios de coragem e ousadia.

Elas é que são flagelo; elas é que nos crestam; elas é que nos tiram a felicidade de viver.

Se fosse possível, com elas, pôr abaixo certos nomes a alvião e a picareta, com bombas de dinamite e com pólvora negra, eu topava, sobretudo se se tratasse de um tal padre Antônio Vieira, um cacetíssimo sermonário, um matóide trocadilhista, ausente total do pensamento e da emoção, de estilo obeso, como diz Oliveira Martins, ditador ainda das nossas letras, como se ele tivesse escrito alguma coisa de literário! Vamos pô-lo abaixo e deixemos o convento em paz!

lima-barreto